O ultraliberal Javier Milei, vencedor das primárias da Argentina, ganhou popularidade ao defender propostas radicais que incluem dolarização da economia e a eliminação do Banco Central.
Agora favorito à Presidência, Milei se declara anarcocapitalista. Em linhas gerais, os “ancaps”, como são conhecidos, defendem uma corrente extrema do liberalismo que prega a eliminação do Estado e a privatização total das relações econômicas. Entenda mais sobre a teoria a seguir.
O que é o anarcocapitalismo?
Trata-se de uma vertente de filosofia ultraliberal estruturada no século 20 que prevê a ausência completa da centralização administrativa do Estado. As relações sociais seriam reguladas pelo livre mercado.
Para os anarcocapitalistas, os serviços básicos, como educação, saúde e segurança, devem ser prestados apenas pela iniciativa privada. Assim, todos os impostos recolhidos pelo Estado seriam abolidos.
“Como todas as filosofias políticas, o anarcocapitalismo pretende responder a uma pergunta: quando é legítimo o uso da força na sociedade? Para os adeptos da corrente, só em caso de autodefesa, com a premissa de não agredir inocentes ou violar suas propriedades”, diz o economista Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil e que se define como um “ancap”.
Assim, o anarcocapitalista propõe o fim do Estado. Os defensores da teoria defendem a liberdade individual absoluta e só toleram a intervenção em caso da defesa da liberdade, da vida e da propriedade.
Quais são as referências dos anarcocapitalistas?
Os anarcocapitalistas são adeptos da Escola Austríaca, cujas referências são os economistas Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992). Para eles, a economia não deve ser regulada pelo Estado, mas funcionar a partir de interações voluntárias e desimpedidas entre agentes privados.
O americano Murray Rothbard (1926-1995) é considerado o pai do anarcocapitalismo. Em livros e artigos, pregou que, para haver liberdade, o Estado deve deixar de existir. “O Estado oferece um canal legal, ordeiro e sistemático de predação da propriedade privada. Torna certeiro, seguro e relativamente pacífico o sustento de uma casta parasita da sociedade”, escreveu em “A Anatomia do Estado”, de 1974 —”casta parasita” é como Milei costuma se referir à classe política da Argentina.
Como funcionaria uma sociedade anarcocapitalista?
Como princípio geral, anarcocapitalistas defendem que o setor privado pode oferecer qualquer tipo de serviço com mais qualidade. Numa sociedade sem Estado, serviços de saúde e educação seriam providos por entidades privadas; não haveria polícia, só empresas de segurança particulares; tribunais seriam substituídos por mediadores, semelhantes aos que já são aceitos em algumas disputas empresariais.
Comunidades anarcocapitalistas funcionariam de forma semelhante a um shopping center ou a um condomínio fechado. Cada um tem suas regras de convivência próprias, ambos são administrados pela iniciativa privada e em geral são mais limpos, seguros e confortáveis do que as ruas do mundo exterior.
As principais características definidoras de um Estado deixariam de existir: o monopólio da força, a tributação para financiar serviços públicos e o controle total sobre a moeda, uma vez que não haveria Banco Central.
Qual é a diferença entre o anarcocapitalismo e o anarquismo?
Enquanto o anarquismo é derivado de uma versão radical do comunismo, com a coletivização da propriedade, o anarcocapitalismo é diferente: defende que todos os serviços hoje fornecidos pelo Estado podem ser desempenhados por relações comerciais privadas entre indivíduos.
O anarquismo ainda se opõe a todo tipo de hierarquia e dominação, diferentemente do anarcocapitalismo, que propõe uma estrutura consentida entre os indivíduos. “Mas tem de ter um chefe e regras”, diz Beltrão.
O anarcocapitalismo é de esquerda ou de direita?
No campo econômico, o anarcocapitalismo é de direita, pautado pelo individualismo e pelo livre mercado.
Diferentemente de alguns movimentos de esquerda que são anticapitalistas e pregam o fim da propriedade privada, anarcocapitalistas afirmam que bens são resultado de esforço do indivíduo ou do de seus antepassados —viram, portanto, uma extensão do indivíduo, tão importante quanto vida e liberdade.
Já no campo social, os anarcocapitalistas defendem causas progressistas, incluindo a legalização das drogas, com a premissa de que a liberdade individual está acima de tudo.
Javier Milei, por exemplo, acha que o governo não deve proibir o casamento gay. Por outro lado, ele é contra o aborto porque acredita que a vida começa no momento da concepção. Assim, interromper uma gravidez “fere o princípio da não agressão” defendido pelos anarcocapitalistas.
Qual é a diferença entre um anarcocapitalista e um libertário?
O libertarianismo é considerado uma corrente próxima do anarcocapitalismo. Grosso modo, a primeira aceita uma interferência mínima do Estado. Anarcocapitalistas nem isso aceitam. Para eles, todos os serviços, inclusive a segurança, devem ser privados.
Quais são as principais críticas ao anarcocapitalismo?
Críticos apontam que não existem grandes exemplos contemporâneos de sistemas anarcocapitalistas exitosos. Também afirmam que esse modelo de sociedade seria insuficiente para conter distorções do próprio mercado, como os monopólios, que desequilibram os princípios de livre concorrência.
Quão difundido é o anarcocapitalismo no Brasil?
A corrente vem se popularizando nos últimos anos. Os anarcocapitalistas estão hoje presentes em dezenas de institutos espalhados pelo Brasil e dominam grande parte de setores da nova economia digital, como o de criptomoedas. Nas redes sociais, atraem principalmente pessoas de 20 a 30 anos.
Um dos “ancaps” influentes no Brasil é Geanluca Lorenzon, ex-secretário de Acompanhamento Econômico no Ministério da Economia do governo de Jair Bolsonaro. Ele foi o principal redator da lei de Liberdade Econômica, sancionada em 2019 e que reduz a burocracia para funcionamento de empresas.
Qual é o ‘efeito Milei’ para a difusão do anarcocapitalismo?
O fenômeno Milei vem ajudando a popularizar o anarcocapitalismo também no Brasil. Raphaël Lima, um dos mais influentes ativistas da bolha “ancap” no país, diz que as visualizações de seus vídeos publicados em seu canal no YouTube triplicaram após a vitória do argentino nas primárias.
Se a comunidade anarcocapitalista brasileira está “soltando foguete de alegria” com a vitória de Milei, por outro lado Lima manifesta receio. “Se der errado, vão apontar para mim e falar: está vendo?”, diz.
A implementação de uma sociedade anarcocapitalista é viável?
Defensores da corrente dizem que o anarcocapitalismo não seria implementado da noite para o dia. Mas algumas medidas seriam postas em prática aos poucos, como a privatização de estatais, demissão de funcionários públicos e a eliminação de impostos.
Em seu programa de governo, Milei descreve um projeto com prazo de 35 anos no qual o país se abriria de forma “unilateral ao comércio internacional” e eliminaria os impostos sobre exportações e importações.