Muitos analistas têm examinado e escrito sobre o aspecto político da deportação de imigrantes levada a cabo pelo recém-empossado governo nos Estados Unidos. Mas qual será o efeito desse ato do ponto de vista espiritual? O que acontecerá com o coração de pessoas que se apresentam como cristãs, entre elas, o presidente Donald Trump?
O que acontecerá com o coração do bilionário Elon Musk, chefe do Department of Government Efficiency ou Doge, que mandou fechar a USAid, órgão de ajuda externa do governo norte-americano? Conforme o New York Times noticiou no dia 4, os EUA economizaria 1% de seu orçamento, mas o mundo fica sem 40% da verba mundial para assistência aos necessitados.
Criada pelo presidente John Kennedy, a USAid tem como objetivo aliviar a pobreza, tratar enfermidades, socorrer em desastres naturais, além de apoiar iniciativas de defesa dos direitos humanos e da democracia. Cento e trinta países receberam ajuda no ano passado e, segundo o mesmo artigo do New York Times, o fechamento provocará milhares de demissões em organizações sociais ao redor do globo.
Musk justificou a decisão dizendo que a agência é um “ninho de vermes”. Será mesmo? Parte dos seus programas ajuda minorias perseguidas em países totalitários e apoia populações LGBTQIA+ ao redor do mundo. Ele justifica a decisão dizendo que esse dinheiro financia agendas mais à esquerda do pensamento do atual governo republicano.
O que dirão os cristãos que viram em Trump e sua equipe a salvação da pátria e a instalação do reino de Deus na Terra? Socorrer os desamparados é um dos pilares do judaísmo e do cristianismo. Dos 35 mil versículos da Bíblia, 2.000 tratam do auxílio ao órfão, à viúva, ao estrangeiro e ao pobre. Não é pouca ênfase.
Para Freud, a experiência de desamparo é central na vida, tanto do indivíduo como da sociedade. Nascemos em desamparo, e sem o “socorro alheio” morreríamos nas primeiras horas de vida. A marca da presença do outro se instala para sempre em nosso psiquismo. Assim nos tornamos sensíveis para as necessidades dos outros e prestaremos ajuda.
Mas nem sempre teremos esse desejo de socorrer. No texto “O Infamiliar”, Freud comenta que pessoas desvalidas evocam sentimentos desagradáveis da infância e que foram tornados in-familiares (“unheimlich” no original alemão, onde heim refere-se a lar, familiar). Por isso a presença do desvalido angustia o imaginário social, como se o pobre fosse nos contagiar com sua pobreza; o órfão e a viúva lembrassem do risco de perder as pessoas queridas; e as minorias LGBTQIA+ fossem abalar a heterossexualidade.
Para nos protegermos dessas fragilidades psíquicas, construímos defesas como repressão e distanciamento afetivo. Colocamos um rótulo negativo nas pessoas e grupos que evocam tais sensações desagradáveis. O carimbo de “ninho de vermes”, por exemplo, distancia Elon Musk e seus assessores do sofrimento das pessoas afetadas e facilita decisões drásticas de corte de auxílio.
Quando a Bíblia diz que a verdadeira religião é cuidar do órfão e da viúva (Tiago 1.27), quer impedir que o coração mantenha essa barricada na alma. Como disse o psiquiatra Carlos Hernández no Fórum Social Mundial, nós, os bem situados, precisamos do migrante, do órfão e da viúva para acordar a misericórdia e a ternura escondidas atrás das barreiras do coração endurecido.
As deportações dos imigrantes e o fechamento da USAid faz o mundo ficar ainda mais inóspito. Mas também terá efeitos nefastos para os bem situados. O coração de Trump, de Musk e de seus apoiadores ficará mais distante da misericórdia, da ternura e da verdadeira religião. Resumindo, do Reino de Deus.