“Estou aqui, na rua San José 1.111, firme e calma. O que mais gostei foi ouvi-los cantar que vamos voltar”, ressoou nos alto-falantes da praça de Maio, em Buenos Aires, a voz da ex-presidente Cristina Kirchner para apoiadores que protestaram contra a prisão domiciliar da peronista.
Nas últimas semanas, enquanto o destino da figura mais importante da oposição era selado pela confirmação da condenação de seis anos de prisão pela Suprema Corte, que também a inabilitou de se candidatar a um cargo público, parecia que nada mais importava no cenário político da Argentina.
A visita recente com apoio incondicional ao primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, a ampliação do acesso de civis a armas antes restritas a militares, a criação de uma força policial com superpoderes —nada que o governo de Javier Milei fez nos últimos dias tirou Cristina das manchetes.
Mas não era assim. Antes da decisão da Justiça, o peronismo estava perdido em batalhas internas entre as diferentes correntes que compõem a força política, com a liderança da ex-presidente sendo questionada e a perspectiva de um fracasso eleitoral nas eleições legislativas nacionais de outubro.
Agora, com Cristina sem poder se candidatar —ela havia anunciado que tentaria uma vaga de deputada regional— o peronismo precisará se reorganizar sem contar com sua principal figura política. As eleições legislativas para a província de Buenos Aires vão ser o primeiro teste.
Era para ser uma disputa local, mas as eleições legislativas na província de Buenos Aires, em setembro, revelaram uma profunda fratura, com a vertente do kirchnerismo, o grupo liderado por Cristina, cada vez mais isolada. O filho de Cristina, Máximo, tenta herdar o capital político, mas ainda não demonstrou o mesmo carisma da mãe ou do pai, o também ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007).
Cristina e o governador da província, seu ex-ministro e afilhado político, Axel Kicillof, já andavam distantes nos últimos anos. Kicillof ganhou protagonismo no campo oposicionista a partir de 2023, com a sua reeleição e a vitória de Milei. Hoje, é o político peronista a ocupar o mais importante cargo no Executivo.
Para o cientista político Juan Adaro, da Pulso Research, o peronismo tem uma oportunidade de construir uma narrativa de unidade com a situação de Cristina presa, mas ao mesmo tempo continua imerso em um problema de falta de renovação.
“Ninguém vai ganhar de Cristina nas urnas, já que ela não pode mais competir de forma justa. Isso vai ser um problema porque, de certa forma, são as mesmas pessoas que ganharam as eleições em 2019 que continuam no comando do peronismo e a população percebe isso.”
Adaro ressalta que o discurso dela para a militância na praça de Maio apontou que ela continuará envolvida na política e buscando a organização do peronismo. “Mesmo que precise esperar seis anos, ainda estará no comando para tentar voltar ao poder ou ao menos direcionar.”
Em outubro, os eleitores vão às urnas para renovar um terço do Senado e metade da Câmara de Deputados nacionais. Hoje o grupo de Milei, A Liberdade Avança, depende de alianças circunstanciais com os radicais, os independentes e, principalmente, o Pro (do ex-presidente Mauricio Macri).
A oposição teme que a divisão no peronismo leve a derrotas significativas para candidatos apoiados por Milei, sobretudo desde que a inflação tem sido uma preocupação cada vez menor para os argentinos.
O ex-ministro da Economia Sergio Massa manifestou essa apreensão. Após ser derrotado por Milei em 2023, havia a expectativa de que ele se tornasse um líder da oposição. Mas sem ocupar cargos no Estado, Massa submergiu. Ele voltou aos holofotes, em março, ao discursar em um evento partidário. “É preciso vencer o derrotismo interno”, disse.
Já na capital da Argentina, o deputado nacional e cientista político Leandro Santoro ficou em segundo lugar nas eleições para o legislativo em maio, enquanto o candidato de Milei e porta-voz da Casa Rosada, Manuel Adorni, ficou em primeiro.
Além deles, outras vertentes menores antagônicas disputam os votos peronistas —e têm ganhado popularidade nas redes sociais. À direita, há o grupo de Guillermo Moreno, ex-secretário de Comércio do casal Kirchner e que foi condenado por abuso de poder, após a manipulação de dados de inflação no Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos). Ainda cabe recurso.
À esquerda, o advogado Juan Grabois milita em defesa de grupos de catadores de recicláveis e moradores de bairros empobrecidos da Grande Buenos Aires. Grabois começou a militar na crise de 2001 e foi pré-candidato à Presidência em 2023, quando perdeu as prévias para Massa.
No interior do país, o peronismo cordobês tem em Juan Schiaretti o seu principal expoente. O ex-governador de Córdoba representa uma força antikirchnerista, em uma província que optou por Milei no segundo turno. Agora, tenta fazer com que seu grupo cresça nas outras províncias.
“Há diferentes grupos que parecem não conseguir encontrar um lugar onde possam se reunir. Talvez o que os una seja o antimileísmo, mas pode não ser suficiente”, diz Adaro.