A criação do termo “genocídio” por Raphael Lemkin, em 1944, não nos garantiu viver num mundo sem genocídio —o “nunca mais” das nossas proclamações morais— mas prometeu-nos ao menos que acabasse a indiferença ao genocídio.
Não que isso tenha valido muito aos tutsis massacrados por hutus em Ruanda em 1994, aos bósnios chacinados em Srebrenica por tropas sérvias no ano de 1995, aos timorenses que perderam quase um terço da população perante a invasão indonésia iniciada em 1975, aos cambojanos assassinados em massa por Pol Pot e o Khmer Vermelho a partir de 1975, ou aos curdos massacrados pelas tropas de Saddam Hussein nos anos 1980. Em cada um desses casos houve uma janela em que a ignorância e a impotência permitiram que os genocidas atuassem.
O que se passa hoje é de outra natureza.
A invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, precedida de um ensaio no qual Vladimir Putin basicamente negava a existência dos ucranianos como povo distinto do russo; o ataque do 7 de outubro de 2023 perpetrado pelo Hamas contra civis israelenses; e sobretudo a ofensiva do exercito israelense contra a faixa de Gaza, liderada pelo governo de Binyamin Netanyahu, são expressão de uma vontade de negação da possibilidade de existência de um povo num determinado território, sob a indiferença de grande parte daquilo do que se costumava chamar de “comunidade internacional”.
Por que digo “sobretudo” para o que se passa em Gaza? Se está documentado que Putin nega a existência do povo ucraniano como distinto do russo, a verdade é que as suas tropas não conseguiram, até agora, derrotar um Estado ucraniano que continua a ter capacidade de se defender. E se me parece claro que o Hamas tem perante israelenses e judeus evidentes intuitos genocidas, que levariam a cabo se pudessem, a verdade é que não dispõe de tal capacidade.
Quanto a Netanyahu, temos uma tripla coincidência: há no seu governo elementos de uma retórica com clara intenção genocida; as Forças Armadas sob o seu comando têm a capacidade de executar tais planos; e há uma janela de oportunidade dada pela cumplicidade e passividade de alguns dos países mais importantes do mundo, em particular os Estados Unidos e vários países europeus.
Outras eras tiveram genocídios, mas não sabiam como nomeá-los. Ou sabiam como nomeá-los, mas não como interrompê-los. Uma era de indiferença ao genocídio representa um escândalo moral ainda maior.
É possível interromper o genocídio em Gaza —deixando de apoiá-lo, tácita ou explicitamente. Suspendendo o acordo de associação que a União Europeia tem com Israel. Determinando um embargo total de armas. Forçando a distribuição de apoio humanitário pelas Nações Unidas ou por países neutros. Reconhecendo a independência e soberania da Palestina, para os países que ainda não o fizeram, contrariando assim a política de fatos consumados de Netanyahu.
E no fim, só haverá uma salvação para a nossa era: levar os genocidas a tribunal internacional, julgá-los e condená-los pelos seus crimes. Não é a história que deve julgar Netanyahu e os seus pares —é a Justiça mesmo. Caso contrário, entregaremos um pútrido legado aos nossos vindouros.