Rosa Cattafi economizou por anos para comprar uma pequena casa em um bairro tranquilo na ponta nordeste da Sicília, com vista para o pitoresco Estreito de Messina.
Mas a casa que ela comprou há 11 anos agora está entre as centenas de propriedades previstas para desapropriação a fim de abrir caminho para a ponte de €13,5 bilhões (R$ 85,7 bilhões) planejada pela primeira-ministra Giorgia Meloni, que ligaria a Sicília ao continente italiano.
Cattafi está determinada a “lutar de todas as formas” para salvá-la. “Fiz muitos sacrifícios para comprar esta casa”, disse a funcionária pública de 66 anos, que trabalha na prefeitura de Messina e pagou €150 mil (R$ 952 mil) pelo imóvel.
“Não tenho plano B. Não me interesso por dinheiro. Se destruírem minha casa, podem me destruir também”, afirmou ela ao jornal Financial Times.
A ideia de conectar a Sicília ao continente intriga os italianos desde a unificação do país no século 19, e nas últimas décadas foi apresentada como uma forma de impulsionar a economia de uma das regiões mais pobres da Itália.
Mas o plano de décadas para construir uma ponte de 3,7 km em uma área suscetível a terremotos sempre enfrentou resistência de moradores desconfiados da máfia e determinados a proteger suas casas e a ecologia do estreito.
Após várias tentativas frustradas, o polêmico projeto foi descartado em 2012, quando a Itália enfrentava uma crise de dívida. Agora, o governo Meloni decidiu reativá-lo, apresentando a ponte como um ativo de defesa que poderia ser contabilizado na nova meta da Otan de gastos de 5% do PIB, que inclui investimentos em infraestrutura.
O embaixador dos EUA na Itália, Tilman Fertitta, já manifestou apoio à ligação com a Sicília, onde os EUA mantêm uma importante base aérea naval desde 1959. No mês passado, ele chegou a dizer que a obra seria “a maior ponte já construída no mundo, muito maior e melhor que a ponte Golden Gate [na Califórnia]”.
Mas os 4,7 milhões de habitantes da ilha —cercados por obras precárias e inacabadas ligadas ao crime organizado— permanecem céticos quanto à ponte e seus supostos benefícios, convencidos de que os recursos deveriam ser usados para melhorar a notoriamente precária rede de estradas e ferrovias da Sicília.
O fantasma da infiltração da máfia siciliana, a Cosa Nostra, ou da poderosa ’Ndrangheta da Calábria no megaprojeto continua sendo uma preocupação séria, mesmo com o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini insistindo que as obras seriam “impenetráveis para criminosos”.
Críticos também questionam a sabedoria de erguer uma ponte sobre o Estreito de Messina, epicentro de um terremoto devastador em 1908 que matou dezenas de milhares de pessoas e continua sujeito a intensa atividade sísmica.
Após batalharem contra o projeto no passado, ativistas locais e proprietários estão se mobilizando novamente. “Essa ponte não é útil para as pessoas daqui”, disse o bibliotecário Luigi Sturniolo, 64, organizador de um recente protesto que reuniu milhares de pessoas. “Essas grandes obras têm como objetivo transferir recursos públicos para empresas privadas de construção —e outras figuras também vão se beneficiar desses fluxos financeiros.”
Proprietários de imóveis que ficam no traçado dos pilares de 400 metros de altura da ponte —e dos seus 40 km de conexões rodoviárias e ferroviárias— prometeram contestar as desapropriações na Justiça.
“Querem usar a força para tomar nossa casa e nós nunca vamos permitir isso”, afirmou a aposentada Cettina Lupoi, 74, cuja residência de quase três décadas está entre as afetadas.
O advogado Antonio Saitta, que representa alguns dos moradores, vê várias brechas legais para contestar a retomada do projeto. A principal delas é a forma como o governo Meloni concedeu o contrato de €10,5 bilhões (R$ 66,6 bilhões) a um consórcio liderado pela construtora romana WeBuild sem realizar uma nova licitação pública.
A licitação original ocorreu em 2006, quando a então Impregilo venceu com uma proposta de €3,8 bilhões. Após o cancelamento do projeto, a empresa —adquirida pela WeBuild em 2014— moveu um processo contra Roma pedindo €700 milhões em indenizações, ação que a WeBuild aceitou retirar em troca de o governo Meloni “reativar” o contrato.
Saitta questiona a legalidade do arranjo. “Essa ressurreição do projeto antigo com os contratantes antigos não é possível pela constituição nem pela lei europeia”, disse o advogado.
Outros moradores temem que as obras tornem seus bairros inabitáveis. “Vai impactar a cidade inteira”, disse o professor Daniele Lalacqua, 63, líder do comitê “Não à Ponte” em Torre Faro, a área mais afetada. “Seremos reféns dessas obras por muitos anos.”
A ornitóloga Anna Giordano, consultora do Fundo Mundial para a Natureza (WWF), afirmou que a ponte prejudicaria a ecologia única do Estreito de Messina, interrompendo uma rota crítica de migração para centenas de espécies de aves.
Grupos ambientais como WWF, Greenpeace e Legambiente já apresentaram queixa à Comissão Europeia alegando que o projeto viola normas da União Europeia de proteção de aves e habitats naturais e pediram a Bruxelas que inicie processos legais contra Roma.
Interromper as rotas migratórias das aves “não é apenas um problema local”, disse Giordano. “Este lugar —a biodiversidade única daqui— pertence ao mundo.”
Piero Ciucci, presidente da estatal Messina Strait Company, que será dona e operadora da ponte, disse recentemente ao jornal italiano La Stampa que tal oposição estava “fazendo a gente perder muito tempo”. Segundo ele, os obstáculos administrativos do projeto eram uma preocupação ainda maior do que seu “enorme desafio tecnológico e de engenharia”.
Na cidade continental de Villa San Giovanni, onde a ponte deve chegar, a prefeita Giusy Caminiti também está profundamente preocupada. Pilares erguidos na orla e as rampas da ponte dividirão a pequena comunidade em duas, disse ela. “A cidade inteira será um canteiro de obras —ficaremos totalmente paralisados.”
Caminiti questionou a viabilidade econômica da ponte, já que a travessia de veículos por balsa caiu para 2,5 milhões por ano, em comparação com 4,8 milhões há duas décadas, e disse também duvidar da sua viabilidade técnica em uma região sísmica.
“A cidade está em pé de guerra”, afirmou. “Temos um grande medo de que comecem a obra, percebam que não podem terminar e abandonem tudo.”