O retorno de Donald Trump à Casa Branca reacendeu tensões na América Latina e fez da região um foco de uma disputa muito maior do que suas fronteiras, com a retórica agressiva de Washington expondo um vazio que Pequim não hesita em explorar.
Nas últimas semanas, a diplomacia chinesa tem aproveitado com excelência cada sanção, tarifa ou operação militar para se apresentar como parceira confiável, enquanto persegue seus próprios interesses estratégicos de longo prazo.
O caso de Cuba ilustra essa dinâmica. Como sabido, Washington ampliou restrições ao programa de cooperação médica, acusando Cuba de “trabalho forçado”, e com o Brasil sendo diretamente alvo de retaliações diplomáticas devido ao programa Mais Médicos.
Pequim respondeu nesta sexta. Na entrevista coletiva que faz diariamente na sede do Ministério das Relações Exteriores chinês, a porta-voz Mao Ning dedicou longos minutos para exaltar as brigadas médicas e condenar as sanções, assumindo o papel de defensora da soberania regional.
A narrativa de solidariedade, claro, tem objetivos claros: consolidar influência e reforçar laços com governos suscetíveis à pressão americana, fortalecendo seu prestígio político na região.
Na Venezuela, a disputa é ainda mais óbvia. O envio de destróieres e fuzileiros americanos ao Caribe foi justificado como combate ao narcotráfico, e a China se adiantou em condenar a intervenção, reafirmando a oposição a qualquer interferência externa. Ato contínuo, o ditador venezuelano divulgou fotos em que aparece sorridente ao lado do embaixador chinês no país, Lan Hu, e destacou nos canais do regime o quão avançado o país asiático é.
Mas em nenhum outro país a escalada comercial expôs ainda mais a lógica do jogo geopolítico como no Brasil. A imposição de tarifas de 50% sobre exportações brasileiras empurrou Brasília a buscar coordenação com Pequim.
Xi Jinping conversou com Lula para articular uma resposta conjunta no âmbito do Brics, e a diplomacia chinesa ainda ofereceu tanto interesse em absorver parte das exportações antes direcionadas aos americanos (como o café) quanto cooperação em setores sensíveis, como aviação, nos quais a Embraer depende do mercado americano.
O alinhamento estratégico evidencia que Pequim age por solidariedade, mas também sabe que há oportunidades comerciais e políticas claras no horizonte.
Até países menores, mas de alto valor simbólico, entram na disputa. No Panamá, a substituição de torres da Huawei por tecnologia americana gerou protestos de Pequim e do governo local. A China denunciou a “influência maligna” dos EUA, relembrando a memória histórica regional da era da Doutrina Monroe e reforçando sua imagem de defensora da soberania.
Enquanto o presidente americano insiste que os Estados Unidos liderem economicamente, cada sanção, tarifa e navio enviado ao Caribe reforça o argumento de Pequim. Não há concessões desinteressadas; há estratégia e oportunidade.
A América Latina, que já foi peça secundária no tabuleiro global, tornou-se palco de uma batalha por corações e mentes em que os chineses movimentam com precisão, aproveitando a falta de consistência e as aberturas criadas por Washington.
Se a Casa Branca não ajustar sua postura, Pequim continuará a transformar a vulnerabilidade em influência concreta. A região não é cúmplice nem altruísta, é alvo e recompensa de um jogo de poder em que apenas os interesses sobrevivem, e a diplomacia chinesa se move com calma calculada, sempre pronta para colher o que Trump deixa escapar.