É em parte pela narrativa bíblica da terra prometida —mobilizada sobretudo por setores do sionismo religioso e, mais recentemente, pelos colonos na Cisjordânia— que grupos da sociedade israelense justificam sua presença na região. E é na presença histórica, seu consequente enraizamento cultural, e no direito à autodeterminação, por outro lado, que a população palestina reivindica o mesmo território.
A disputa das regiões que hoje compõem a Faixa de Gaza e a Cisjordânia é, neste momento, palco de um processo de ocupação acelerado. Em 2024, Tel Aviv declarou 24 mil dunams —medida equivalente a 1.000 m²— da área da Cisjordânia como terras estatais israelenses. Ao somar os 23 anos anteriores, de 2000 a 2023, foram pouco mais de 23 mil dunams determinados da mesma maneira.
Na prática, isso significa que, somente após o início da guerra, em outubro de 2023, o Estado judeu ocupou mais terras da Cisjordânia do que havia feito nos últimos 23 anos somados.
A declaração de terras estatais é, segundo o movimento israelense Peace Now, uma acrobacia jurídica que permite aos israelenses destiná-las a assentamentos —ou seja, a classificação tira o acesso dos palestinos e permite seu uso para os colonos de Israel.
Para Yasmeen El-Hasan, coordenadora da União dos Comitês de Trabalho Agrícola da Palestina (UAWC, na sigla em inglês), esse avanço sem precedentes é parte de uma estratégia tática de colonialismo de povoamento perpetrada pelo governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu.
A organização representada por Yasmeen foi fundada em 1986 e é responsável pelo Banco de Sementes Palestino de Hebron, que, segundo ela, foi atacado no fim de julho por militares israelenses.
“Usando escavadeiras e máquinas pesadas, a ocupação destruiu os armazéns de estocagem e a infraestrutura da unidade, na qual estavam guardados equipamentos essenciais e materiais para as sementes”, afirma Yasmeen à Folha.
Ela diz que o caso foi apenas mais um dos ataques que a UAWC e outras organizações civis palestinas —tanto do campo da agricultura quanto do desenvolvimento social— vêm sofrendo repetidamente. Há, segundo Yasmeen, relação entre o aumento do número de terras ocupadas e as agressões sistematizadas a instituições que trabalham pela soberania alimentar palestina.
“A estratégia de colonos implica a eliminação ou o deslocamento forçado da população indígena [como ela se refere aos palestinos] para substituí-la por uma população de colonos. E isso requer terra.”
É baseado nessa lógica que, de acordo com Yasmeen, o governo israelense promove tais políticas coordenadas. “É uma tentativa de roubar o território, romper a conexão material palestina com nossa terra e nossa história, de nos expulsar de nosso lugar e de tornar impossível para nós nos sustentarmos aqui”, afirma.
O alto nível histórico de novas ocupações se deve, segundo Yasmeen, ao conflito contra o Hamas. “Sempre que a ocupação israelense trava uma guerra intensificada na Faixa de Gaza, estes momentos correspondem a períodos de limpeza étnica intensificada na Cisjordânia também.”
Uma capitã do Exército de Israel ouvida sob condição de anonimato pela Folha afirmou que o crescimento no número de operações —e o consequente aumento no número de mortos e feridos no território palestino— se deve a uma mudança no entendimento que as forças tiveram depois do ataque do 7 de Outubro, quando terroristas do Hamas assassinaram cerca de 1.200 pessoas num mega-atentado.
Segundo a militar, trata-se da maior modificação do tipo desde 1967, quando Israel ocupou militarmente a Cisjordânia —status em que permanece desde então.
Já que, segundo ela, o Hamas surpreendeu Israel com as possibilidades bélicas que demonstrou, as operações desde então também focam capacidades potenciais, não apenas vontades já expressadas ou um gatilho existente. Não há tempo para esperar, disse, que um palestino faça uma publicação nas redes sociais sobre “matar judeus” para, então, agir.
O porta-voz das forças israelenses Rafael Rozenszajn faz coro ao que a comandante detalhou à reportagem e afirmou que não se trata de uma “questão de colonizar a Cisjordânia”, mas de “fazer operações militares que garantam a defesa do Estado de Israel”.
Os dois defendem que, se o Exército de Tel Aviv não continuar a operar, como tem feito, várias células terroristas voltarão a atuar contra o território israelense.
Questionados sobre operações das forças contra organizações civis palestinas na Cisjordânia, os representantes afirmaram não ter conhecimento de casos específicos e disseram haver consequências jurídicas para quaisquer cidadãos, mesmo israelenses, que cometam crimes em algum dos territórios.
Para Yasmeen, Israel soma um rol de ações estratégicas que visam minar a sociedade palestina. Em 2021, o governo israelense classificou a UAWC e outras cinco instituições civis de “organizações terroristas”, no que diversos observadores internacionais defenderam ser ataques infundados, e as Nações Unidas declararam se tratar de afirmações “sem provas e arbitrárias”.
“É tão ridículo”, afirma Yasmeen, porque “esta é mais uma estratégia da ocupação israelense que tenta deslegitimar os movimentos palestinos, a organização palestina, especialmente aquelas que enraízam seu povo na terra”.
“É uma tática de medo, embasada em profundo racismo e islamofobia”, afirma.