A morte do influenciador trumpista Charlie Kirk tem provocado um intenso debate nos Estados Unidos sobre os limites da liberdade de expressão, um direito protegido pela Constituição americana.
Desde o assassinato de Kirk, o presidente Donald Trump e integrantes de seu governo têm dito que vão punir grupos de esquerda e pessoas que criticassem ou atacassem o ativista de direita, assassinado no último dia 10. A discussão em torno da morte já provocou uma série de demissões.
O caso mais emblemático veio à tona na quarta-feira (17), com a suspensão do programa do apresentador Jimmy Kimmel na rede ABC. Trump comemorou o afastamento do comediante e afirmou que emissoras que o criticassem estariam sujeitas à perda da licença de transmissão.
Segundo registros da imprensa americana, pelo menos 36 pessoas já foram demitidas por comentários feitos após o assassinato de Kirk. Entre os casos estão funcionários da Universidade de Clemson, da MSNBC, da Agência Federal de Gestão de Emergências e do time Carolina Panthers, segundo o Washington Post.
Nesta semana, a colunista Karen Attiah também foi demitida do Washington Post e afirmou que a decisão foi motivada por sua reação ao assassinato de Kirk. Ela havia feito uma série de publicações abordando temas como raça e violência armada após o ocorrido. Departamentos de bombeiros locais e distritos escolares também relataram suspensões e demissões de funcionários por declarações consideradas controversas.
No caso de Kimmel, o comediante fez um comentário sobre Tyler Robinson, o suspeito detido e formalmente acusado de matar Kirk, no programa Jimmy Kimmel Live! na segunda-feira (15). A ABC anunciou sua demissão após Brendan Carr, presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC), criticar os comentários publicamente.
A liberdade de expressão, prevista na Primeira Emenda da Constituição dos EUA, é considerada um dos pilares fundamentais da democracia americana. É com base nessa garantia, inclusive, que Trump e seus aliados têm justificado sanções contra o ministro Alexandre de Moraes (STF), afirmando que ele tentou restringir o direito de expressão de empresas de redes sociais e cidadãos americanos ao ordenar a remoção de conteúdos no Brasil.
A secretária de Justiça dos EUA, Pam Bondi, afirmou que o governo pretende perseguir judicialmente quem publicar “discurso de ódio” e que essas pessoas deveriam ser “silenciadas”. “Existe a liberdade de expressão, e existe o discurso de ódio. Nós vamos, sim, mirar em você, ir atrás de você, se estiver atacando alguém com discurso de ódio”, declarou.
A posição de Bondi contrasta com aquilo que o próprio Kirk defendia. “Discurso de ódio não existe legalmente nos Estados Unidos. Existe discurso feio, repugnante, maldoso. E TODOS são protegidos pela Primeira Emenda”, escreveu o influenciador no ano passado. A frase voltou a circular nas redes sociais, inclusive por ativistas da direita que hoje criticam a postura do governo.
Bondi depois esclareceu que a Primeira Emenda não protege discursos que constituam ameaças reais. A Fundação para os Direitos Individuais e a Expressão (Fire, na sigla em inglês) respondeu, destacando que, segundo decisões reiteradas da Suprema Corte, até mesmo ideias ofensivas são protegidas pela Constituição, desde que não incitem violência nem representem ameaças concretas.
“A ideia de que ‘discurso de ódio’ é uma categoria separada e não protegida de expressão é algo que, infelizmente, temos que desmentir repetidamente. O fato é que não existe exceção para ‘discurso de ódio’ na Primeira Emenda —nem pode existir. A Suprema Corte já rejeitou essa noção em várias ocasiões, e os motivos para isso deveriam ser óbvios para alguém na posição de Bondi”, escreveram Aaron Terr e Angel Eduardo, integrantes da Fire, em uma análise sobre o caso.
O vice-presidente dos EUA, J. D. Vance, também apoiou a campanha, afirmando que pessoas que celebraram o assassinato deveriam ser responsabilizadas e estimulando denúncias.
A extensão da proteção da Primeira Emenda a trabalhadores do setor privado tem gerado debate entre especialistas. Alguns afirmam que empresas privadas têm mais liberdade para demitir funcionários por declarações que prejudiquem sua imagem, ao contrário de órgãos públicos, que estão mais restritos por obrigações constitucionais.
“[Dizer] Algo como ‘Charlie Kirk merece morrer’ certamente é protegido pela Primeira Emenda, por mais repugnante ou ofensivo que seja”, afirmou à NBC o professor Jonathon Masur, da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Segundo ele, o limite se dá quando o discurso se torna uma ameaça direta ou incita à violência.
A repercussão do caso levou até mesmo republicanos a endurecerem sua retórica. O deputado Clay Higgins prometeu “usar autoridade do Congresso e toda a influência sobre as plataformas de big tech para exigir o banimento imediato e vitalício de toda postagem ou comentarista que menosprezasse o assassinato” de Kirk.
Em resposta, um grupo de democratas anunciou a intenção de apresentar um projeto de lei para reforçar as proteções legais de pessoas que estejam sendo perseguidas pelo governo Trump por exercerem sua liberdade de expressão. A proposta tem pouco apoio entre os republicanos e dificilmente avançará no Congresso, mas os democratas consideram a iniciativa um posicionamento político necessário.