Uma folha de papel amarelada que repousa nos arquivos do Itamaraty, no Rio de Janeiro, está completando 200 anos. É a certidão de nascimento das relações diplomáticas entre França e Brasil. A tinta já está um pouco esmaecida, mas se leem claramente a assinatura do rei Carlos 10º (1757-1836) —um simples “Charles”—, o selo real e o teor:
“O desejo que temos de estender o comércio e a Navegação de nossos súditos, assim como as relações já subsistentes entre a França e o Império do Brasil, nos determinou a negociar e a concluir uma Convenção de comércio (…) confiando-nos inteiramente na capacidade, prudência e experiência do Senhor Conde de Gestas, nosso Cônsul-Geral no Brasil (…) damos-lhe pleno e absoluto poder a fim de reunir-se com o Plenipotenciário ou os Plenipotenciários do nosso mui caro e mui amado bom Irmão e Primo, o Imperador do Brasil.”
A negociação do reconhecimento, porém, foi um processo mais complexo do que as duas páginas dessa carta fazem supor. É o que mostram documentos consultados pela Folha nos arquivos do Itamaraty e do Quai d’Orsay, o ministério francês das Relações Exteriores.
Pode surpreender que, mesmo sem reconhecer a independência brasileira, a França já tivesse um consulado no Rio de Janeiro. É que ele tinha sido criado em 1815, quando a corte portuguesa estava instalada no Brasil. “Já naquela época os laços eram muito fortes”, diz o atual embaixador da França, Emmanuel Lenain, citando a célebre Missão Artística Francesa de 1816.
Embora a carta de Carlos 10º seja datada de 20 de outubro de 1825, considera-se o dia 26 como o reconhecimento do Brasil pela França. Foi nesse dia que o conde de Gestas entregou oficialmente ao governo brasileiro suas credenciais diplomáticas.
“Para nós, é uma data muito simbólica”, afirma Lenain. No final de novembro, uma exposição na Biblioteca Nacional do Rio vai comemorar o bicentenário.
A carta apresentada por Gestas em 26 de outubro de 1825 não foi, porém, a datada de 20 de outubro, hoje arquivada no Itamaraty. O motivo é óbvio: na época, não havia Sedex nem WeTransfer. Navios levavam semanas para fazer a travessia do Atlântico.
Na verdade, o conde francês tinha em mãos outra carta, datada de abril, com teor quase idêntico, mas uma sutil diferença que irritou o jovem monarca brasileiro. Carlos 10º não falava em “Império do Brasil” e “Imperador do Brasil”, e sim em “governo brasileiro” e “Don Pierre”.
A decisão de não chamar o Brasil de império foi proposital. Em abril de 1825, Portugal ainda não havia reconhecido a independência brasileira. Por isso, a França temia melindrar dom João 6º.
Em agosto de 1825, porém, foi finalmente assinado o reconhecimento do Brasil por Portugal, quase três anos depois do Grito do Ipiranga. O acordo foi mediado pelo Reino Unido, interessado em consolidar o lucrativo comércio com a ex-colônia portuguesa. A França, que também queria incrementar os negócios com o Brasil, estava liberada para reconhecer o império brasileiro.
Carlos 10º enviou, então, a segunda carta, afagando dom Pedro 1º com o tratamento de “mui caro e mui amado bom Irmão e Primo, o Imperador do Brasil”. O “irmão” era referência ao fato de os dois serem coroados; o “primo”, ao parentesco distante, ambos descendentes do rei Luís 14 da França.
Assim, pôde ser assinado o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio entre França e Brasil, no Rio, em janeiro de 1826.
Embora nunca tenha tido formalmente o título de embaixador —oficialmente, foi encarregado de negócios e cônsul-geral— o conde de Gestas é considerado o primeiro representante da França no Brasil pós-reconhecimento.
Aymar Marie Jacques de Lespéroux Gestas de Roquefeuil nasceu em Paris em 1786, em uma família de nobres, próxima da monarquia, que durante a Revolução Francesa exilou-se em Portugal. Em 1810, Gestas mudou-se para o Brasil, dois anos depois da fuga da corte de dom João 6° para o Rio.
Em 1823, Gestas foi nomeado por François-René de Chateaubriand, ministro das Relações Exteriores (e monstro sagrado da literatura francesa), como encarregado de negócios da França no Brasil. Gestas era casado com uma sobrinha de Chateaubriand, o que não deve ter atrapalhado a indicação.
Àquela altura, Gestas já era famoso no Rio. Dono de uma fazenda no atual bairro do Alto da Boa Vista, plantava café e frutas europeias menos comuns nos trópicos, como maçã e pêssego. Amigo de dom Pedro 1º, que frequentava sua casa e foi padrinho de seu filho (que recebeu o nome de Pedro), Gestas chegou a oferecer ao imperador ajuda militar francesa para reprimir a insurreição de Frei Caneca no Nordeste, em 1824.
Encerrada a carreira diplomática, o conde fixou residência na ilha do Viana, em Niterói, sem descuidar do pomar. Dizem que a fruta-do-conde tem esse nome no Brasil em referência a ele, mas é possível encontrar menções ao termo anteriores ao século 19. Gestas morreu afogado na baía de Guanabara aos 51 anos, supostamente tentando salvar um escravizado que havia caído de um barco.



