O Departamento de Justiça dos Estados Unidos, através de seu escritório de assessoria jurídica, afirmou em um parecer confidencial elaborado em julho que militares que participam dos ataques contra barcos supostamente ligados ao tráfico de drogas na América Latina não estão expostos a processos no futuro, segundo quatro pessoas familiarizadas com o assunto, ouvidas pelo jornal The Washington Post.
A decisão de buscar um parecer sobre o assunto reflete as crescentes preocupações dentro do governo de Donald Trump levantadas por advogados civis e militares de alto escalão de que tais ataques seriam ilegais.
Os bombardeios, 19 no total, com um saldo de 76 mortes, começaram em setembro —embora as discussões entre agências do governo sobre o uso da força para combater cartéis tenham começado no início do governo, em janeiro.
Oficiais de alta patente, incluindo o almirante Alvin Holsey, chefe do Comando Sul que pediu demissão em outubro, pediram cautela em relação a tais ataques, segundo duas pessoas que, como várias outras entrevistadas, falaram sob condição de anonimato devido à sensibilidade do assunto.
Holsey queria garantir que qualquer opção apresentada ao presidente fosse totalmente analisada primeiro, disse uma dessas pessoas. O almirante anunciou abruptamente que renunciaria no final do ano —ele teria mais dois anos no cargo, de acordo com o costume da função.
Um porta-voz do Pentágono, Sean Parnell, havia negado que Holsey tivesse “hesitação ou quaisquer preocupações” sobre a missão. Um porta-voz de Holsey disse que não tinha informações a fornecer sobre tais discussões.
Em uma declaração ao Washington Post na quarta-feira (12), Parnell afirmou que “as operações atuais no Caribe são legais tanto sob a lei dos EUA quanto sob a lei internacional” e que todos os bombardeios estavam em “total conformidade com o direito dos conflitos armados”.
“Advogados em toda a cadeia de comando estiveram completamente envolvidos na revisão dessas operações antes da execução”, disse ele, acrescentando que o pessoal tem “a oportunidade de discordar”.
“Os ataques foram ordenados de acordo com as leis dos conflitos armados e, como tal, são ordens legais. Os funcionários militares são legalmente obrigado a seguir ordens legais e, como tal, não estão sujeitos a processo por seguir ordens legais”, afirmou um porta-voz do Departamento de Justiça.
O parecer do departamento, de quase 50 páginas, também argumenta que os EUA estão em um “conflito armado não internacional” travado sob as autoridades do Artigo 2 da Constituição americana, um elemento central para a análise de que os ataques são permitidos pela lei do país.
O argumento de o que o país está em um conflito armado, que também foi apresentado em uma notificação ao Congresso feita pelo governo no mês passado, é detalhado com mais profundidade pela assessoria jurídica do departamento. O parecer também afirma que os cartéis estão vendendo drogas para financiar uma campanha de violência e extorsão, segundo quatro pessoas.
“Não conheço nenhum outro lugar na lei doméstica ou na lei internacional, nesse sentido, onde alguém tenha argumentado que introduzir drogas em um país é o tipo de violência organizada que pode desencadear um conflito armado e dar à nação o direito de matar pessoas simplesmente porque fazem parte de uma suposta força inimiga”, disse Martin Lederman, um vice-procurador-geral assistente do escritório de assessoria jurídica do Departamento de Justiça durante o governo Obama que agora leciona em Georgetown.
Adam Isacson, um estudioso do Escritório de Washington para a América Latina, afirmou que “não há prova” de que as gangues estejam usando lucros de drogas com a intenção de promover violência ou caos nos EUA. “Esses grupos são empresas. Se estão realizando violência nos EUA, estão fazendo isso por lucro, não com o propósito de semear terror”, disse.
O governo Trump também acusa Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, de liderar um cartel de drogas. Os EUA mobilizam cerca de 15 mil soldados na região, incluindo militares distribuídos em aproximadamente 12 navios de guerra.
A chegada, nesta semana, do porta-aviões USS Gerald Ford, o maior e mais poderoso do mundo, em águas próximas à América Latina levou a Venezuela a colocar todo o arsenal militar do país em prontidã —enquanto isso, o acúmulo de poderio militar dos EUA na região alimenta especulações de que o governo Trump pretende intensificar dramaticamente sua campanha na região.
Legisladores democratas que leram o memorando disseram que a análise jurídica apresentada não era convincente.
“Parece que você deu uma tarefa a um advogado: ‘dê-me o melhor argumento possível para justificar por que isso é legal —seja tão inventivo quanto quiser'”, disse o senador Adam Schiff (Califórnia), ex-promotor federal, a repórteres na semana passada. “Se esse parecer fosse adotado, ele não restringiria qualquer uso de força em qualquer lugar do mundo. Quero dizer, é amplo o suficiente para autorizar praticamente qualquer coisa.”
Schiff acrescentou que via risco legal para os militares por participarem dessas operações. “Eu certamente não gostaria de confiar no raciocínio que li”, disse.
A aparente tentativa do Departamento de Justiça de aliviar as preocupações de que os militares dos EUA possam ser expostos a processos judiciais lembra a resposta do mesmo escritório de assessoria jurídica do departamento durante o governo de George W. Bush quanto às preocupações dos principais advogados militares sobre as “técnicas de interrogatório” usadas em suspeitos de terrorismo detidos após o 11 de Setembro, dizem analistas.
Em um memorando de 2003, que já deixou de ser confidencial, John Yoo, então vice-procurador-geral assistente do escritório, abordou as preocupações de que as técnicas violavam estatutos de proibição à tortura. “Mesmo que esses estatutos fossem mal interpretados para se aplicar a pessoas agindo sob a direção do presidente, o Departamento de Justiça não poderia fazer cumprir esta lei ou qualquer outro estatuto criminal contra funcionários federais que estivessem agindo de acordo com a autoridade constitucional do presidente para dirigir esforços de guerra”, escreveu Yoo.
Naquela ocasião, como agora, os militares em campo estão sendo solicitados a conduzir atividades que são “sem precedentes e, francamente, ilegais”, disse Rebecca Ingber, ex-advogada do Departamento de Estado e especialista em leis de guerra.
Afirmar que uma prática é legal não necessariamente a torna legal, embora, na prática, um parecer do escritório jurídico do departamento “pode muito bem servir como um obstáculo para um futuro processo do Departamento de Justiça”, disse ela.
Uma futura gestão da instituição poderia retirar o memorando, como o governo Obama fez com memorandos que justificavam o uso das ténicas de interrogatório usadas na era Bush, mas não houve processos para funcionários que haviam se apoiado nesses memorandos.
Yoo afirmou que a campanha atual do governo Trump na América Latina borra a distinção entre crime e guerra, em um recente artigo de opinião no Washington Post. Ele também acusou a Casa Branca de ainda não ter fornecido “evidências convincentes em tribunal ou ao Congresso de que os cartéis se tornaram braços do governo venezuelano. Essa demonstração é necessária para justificar os ataques navais nos mares sul-americanos”, escreveu ele.
Ao enquadrar a campanha militar como uma guerra, o governo consegue argumentar que os estatutos sobre homicídio não se aplicam nesses casos, disse Sarah Harrison, analista sênior do International Crisis Group e ex-advogada do Pentágono. “Se os EUA estiverem em guerra, então seria juridicamente legal usar força letal como primeiro recurso”, disse ela. O presidente, argumentou, “está fabricando uma guerra para que possa contornar as restrições ao uso de força letal em tempos de paz, como os estatutos sobre homicídio”.




