Parte da reação magoada às palavras de Friedrich Merz sobre Belém do Pará vem de uma expectativa: a de que a Europa seja fiel ao Iluminismo que é a sua tradição filosófica de base, que seja aberta ao mundo e que faça a defesa de valores universais, como sejam o respeito pela dignidade de todas as pessoas e a curiosidade e até o espanto ou o afeto por todas as culturas, nações e o patrimônio comum da humanidade —de que um país como o Brasil e uma cidade como Belém são exemplos maiores.
Mas essa expectativa parte de um equívoco. São muito mais tributários desses valores os países do continente americano, praticamente todos eles independentes por efeito das ideias do século 18 e do século 19, do Iluminismo ao Romantismo.
E há ainda um provincianismo de séculos que pesa sobre a Europa e as suas sociedades. Essa atitude insular e pouco curiosa, de que Merz é um exemplo, não surpreende ninguém que conheça políticos europeus e, em particular, alemães. A própria política alemã favorece essa ascensão da política provincial para a política federal, muitas vezes sem passar pela política europeia, o que explica os embates na União Europeia entre os países e os políticos que defendem uma Europa mais aberta ao mundo e de uma política alemã, autossuficiente e satisfeita com o seu conforto material e qualidade de vida, que não vê razões para mudar os seus hábitos.
Curiosamente, essa dicotomia aparece precisamente num dos contos filosóficos mais importantes do Iluminismo: “Cândido, ou o Otimismo”. Quem leu o livrinho de Voltaire sabe que a sua história começa num castelo alemão, na Vestfália, onde vive um barão de Thunder-ten-Tronck. Tudo ali é rico, confortável e, numa palavra, perfeito. É desse castelo que é expulso o protagonista da história, o jovem Cândido, que é enviado a vaguear pelo mundo, sofrendo desventura atrás de desventura, enquanto chora lágrimas saudosas pelo castelo de Thunder-ten-Tronck e a sua Vestfália natal.
Da Europa para o Novo Mundo, Cândido vai sofrendo dissabores, até que abandona a filosofia que lhe tinham ensinado, e segundo a qual “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. No fim do conto, estabelecido definitivamente na Turquia, encontra os pequenos prazeres da vida e substitui essa máxima por uma outra: “sei apenas que é preciso cuidar do nosso jardim”.
Também essa frase tem uma leitura mais provinciana ou mais cosmopolita. Para uma visão mais superficial e apressada, Cândido escondeu-se do mundo e remeteu-se à pacatez da vida familiar. Mas aquele “é preciso cuidar do nosso jardim” vai muito mais fundo. Se entendermos o “jardim” como sendo o próprio planeta, podemos ver aqui uma máxima cosmopolita e a prefiguração de um pensamento ecológico de que precisamos hoje mais do que nunca.
Merz faz parte daqueles políticos europeus que acha que o jardim é apenas o seu continente e que o resto do mundo é o reino do caos e da desorganização. Isso sugere-nos que não apreendeu a lição da COP: Todos temos de cuidar do nosso jardim comum, e não apenas cada um do seu. Mas, para isso, é preciso saber valorizar a beleza daquilo a que não se está habituado.
