O cemitério argentino de Darwin, nas ilhas Malvinas/Falkland, está perto de concluir um processo de mais de quatro décadas. Restam apenas cinco sepulturas sem identificação.
Para as famílias dos soldados argentinos mortos na Guerra de 1982 —quando os argentinos invadiram as ilhas, que tem status de Estado associado ao Reino Unido—, isso é essencial: saber onde está enterrado um filho ou um irmão.
Para a história do conflito, é a tentativa tardia de pacificar os ânimos dos que acham que essa disputa ainda não terminou.
Afinal, os argentinos não desistiram de reivindicar a soberania nas ilhas, mesmo depois de perderem a guerra e de ter havido um referendo, em 2013, em que mais de 99% da população pediu que o vínculo com o Reino Unido permanecesse igual.
Logo após o fim dos combates —que mataram 649 pessoas do lado argentino e 255 do lado britânico—, não houve interesse em organizar um cemitério para os soldados argentinos. Os corpos permaneciam espalhados pelas montanhas e outros campos de batalha.
Foi logo após o conflito que chegou às ilhas o oficial britânico Geoffrey Cardozo. Ele fora enviado para supervisionar o pós-conflito. Mas, à medida que engenheiros avançavam na retirada das milhares de minas espalhadas pelas ilhas, corpos iam aparecendo.
“Um dia me ligaram e disseram ter encontrado um corpo. Eu voei de helicóptero e desci no meio do campo minado. Foi o primeiro que encontrei. Um soldado argentino. Estava deitado na neve, com os olhos abertos. Eu fechei os olhos dele e pensei que não podia ter mais do que 18 ou 19 anos”, conta Cardozo à Folha.
O impacto foi definitivo. “Pensei na minha mãe me beijando quando eu ia para alguma missão. E pensei: ‘este garoto também tem uma mãe’. Esse pensamento motivou tudo o que fiz depois.”
A partir daí Cardozo conta ter considerado que aquela era sua verdadeira missão. “Era mais urgente reunir esses cadáveres e construir um cemitério, já que o governo argentino não queria levá-los de volta.”
Os presidentes argentinos pós-ditadura tampouco fizeram algum esforço para repatriá-los. O argumento era que eles tinham caído em defesa de um solo que consideravam argentino, e que, por isso, ali deveriam ficar.
Mas os corpos não podiam permanecer nas colinas onde a maioria havia morrido durante os combates. Também não podiam ser enterrados no cemitério civil de Stanley. A população da capital rejeitou a construção de um cemitério argentino na cidade. Foi então que surgiu a solução. “Esse homem maravilhoso, um falklander, disse: ‘Geoffrey, eu tenho um terreno para você’. Foi quase bíblico, sabe?”, conta Cardozo.
O oficial britânico voltou a Londres, reuniu uma equipe e retornou às Malvinas. O trabalho começou em janeiro de 1983. Em poucas semanas, ele e sua equipe recolheram 246 corpos. Grande parte deles não possuía nem um documento, razão pela qual Cardozo os enterrou junto a seus pertences, para ajudar em um futuro trabalho de identificação. Cada um ganhou um caixão e uma sepultura. Mas cada uma das lápides tinha os mesmos dizeres: “Soldado argentino, apenas conhecido por Deus”.
“O termo ‘repatriação’ é muito complicado na Argentina“, diz Cardozo. “Os governos pensam que as ilhas são argentinas, então acreditam que eles devem permanecer ali.”
A maioria dos combatentes vinha de províncias pobres, como Corrientes e Formosa. Assim, sempre foi muito difícil que as famílias fossem visitá-los. Algumas ONGs e empresários tocados pela causa de vez em quando promovem a viagem de parentes. “Porém, quando eles chegavam lá, não sabiam que morto homenagear, porque não havia identificação”, diz Cardozo.
Décadas se passaram até que o cenário começasse a mudar. O ex-combatente argentino Julio Aro visitou o cemitério de Darwin e ficou impactado. Associou-se a Cardozo e ambos buscaram a Cruz Vermelha. O governo das ilhas estimulou o trabalho de tom meramente humanitário.
Iniciou-se uma longa mobilização, mas durante anos não houve avanços concretos. Quando os Kirchner estavam no poder na Argentina, com um forte discurso anti-imperialista, o governo colocou obstáculos ao projeto. As conversas com o Reino Unido só se destravaram em 2016, em uma reaproximação diplomática entre os dois países. O então presidente Mauricio Macri defendeu que o projeto de identificação fosse levado adiante.
A partir de 2017, equipes forenses exumaram os corpos e realizaram testes de DNA, comparando-os com amostras fornecidas por familiares. O trabalho envolveu a renomada Equipe Argentina de Antropologia Forense. Os resultados começaram a aparecer. Em 2018, 90 soldados haviam sido identificados. E o processo continua.
A comparação do cemitério hoje com o que a Folha visitou há 12 anos é impactante. Naquela época, tratava-se de um cenário de várias sepulturas brancas sem nome. Agora, as famílias já depositam flores, fotografias, cartas, terços e pequenos objetos dos soldados. Cada uma volta para casa com um sentimento de alento.




