A Bolívia entra em seu terceiro século de história independente em uma complexa encruzilhada. Depois de quase duas décadas de hegemonia do projeto de esquerda do Movimento ao Socialismo (MAS), liderado por Evo Morales e Luis Arce, interrompido apenas pelo breve e contestado governo de Jeanine Áñez, o país se prepara para um provável retorno da direita ao poder.
Embora pouco confiáveis e exibindo alto número de indecisos, as pesquisas indicam que a disputa, iniciada neste domingo, deve ir para um segundo turno. Os dois favoritos são velhos conhecidos dos bolivianos, o empresário Samuel Doria Medina e o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga, ex-vice do ditador Hugo Banzer. Ambos concorrem pela quarta vez ao cargo.
Qualquer que seja o vencedor, herdará um cenário crítico. A crise econômica já corrói o cotidiano: o desabastecimento se impõe, a escassez de dólares paralisa importações e pressiona preços, enquanto o narcotráfico, aliado a redes transnacionais, ganha espaço em regiões estratégicas. Essa degradação convive com um problema estrutural que atravessa os dois últimos séculos —a dependência de um modelo extrativista herdado da Colônia e que, embora tenha financiado ciclos de crescimento, manteve o país preso à exportação de matérias-primas sem valor agregado. A exploração de recursos naturais e a agropecuária de commodities continuam sendo a espinha dorsal da economia, reproduzindo desigualdades e concentrando poder político e econômico.
A lógica extrativista não é apenas econômica. É também política e cultural. Nas últimas décadas, quando os preços internacionais estavam altos, o incentivo foi explorar mais. Quando caíram, a “solução” também foi explorar mais. Um círculo vicioso. Se a elite resiste às regulações ambientais, boa parte da população encara a exploração desses recursos como inevitável.
O agravamento da crise ambiental coloca essa dependência em xeque. Os megaincêndios, cada vez mais intensos, destroem florestas, lavouras e biodiversidade. A mineração ilegal de ouro contamina rios com mercúrio, ameaça povos indígenas e se entrelaça com redes de tráfico de pessoas e armas. A perda de cobertura florestal e a degradação do solo comprometem as cadeias produtivas, enquanto a escassez e a poluição da água já afeta comunidades urbanas e rurais. A combinação de colapso ambiental e crime organizado criou zonas de “ausência do Estado” onde grassa a violência.
Diante disso, a transição para um modelo econômico pós-extrativista vira questão de sobrevivência.
Há caminhos possíveis. Entre eles, incentivar o turismo sustentável, impulsionar a economia criativa com base na cultura e na gastronomia, a agroecologia e a agricultura familiar voltadas ao mercado interno —com exportações de alto valor agregado.
Qualquer transição dependerá de uma liderança disposta a construir consensos políticos e sociais em um cenário difícil de fragmentação dos partidos, integrar a pauta ambiental às prioridades de desenvolvimento e enfrentar interesses arraigados.
Outro desafio será manter o saldo positivo dos anos do MAS —a diminuição da pobreza, a criação de uma nova classe média e uma maior inclusão social e étnica.
Honrar o Bicentenário exigirá romper as dependências históricas, superar o passado de enfrentamentos raciais e enfrentar a crise ecológica.