Os dias que correm, com suas polêmicas agressivas nas redes, não parecem feito para grandes debates intelectuais. Mas eles estão logo ali abaixo da superfície —e o mais decisivo de todos opôs o papa Francisco a um dos últimos homens que ele viu, o vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance.
A história é recente e conta-se rápido: num dos seus costumeiros ataques contra a esquerda, a quem acusava desvairadamente por (segundo ele) gostar mais de imigrantes em situação irregular do que da sua própria família, o recém-empossado Vance invocou o que disse ser uma ideia “muito cristã”.
“Primeiro você ama a sua família, depois o seu vizinho, depois a sua comunidade, depois ama seus concidadãos em seu próprio país, e só depois disso você pode se concentrar e priorizar o resto do mundo. Muita gente da extrema esquerda inverteu completamente essa ordem”.
Perante a estranheza de muita gente, Vance limitou-se a responder: “joga ‘ordo amoris’ no Google”. E assim, com o verniz de uma expressão latina, e a assunção de que ela viria como ele a descrevia de Santo Agostinho e Tomás de Aquino, Vance (que é um convertido ao catolicismo, da mesma forma que se converteu ao trumpismo) passou despreocupadamente aos seus próximos ataques aos mais fracos e vulneráveis com alegada justificação teológica.
Não é preciso ser católico nem cristão, porém, para sentir um fedor de mentira nessa história. Em primeiro lugar, “ordo amoris” é singular e significa “a ordem do amor” (ou, na expressão que Agostinho realmente usa, falando de quem estima bem as coisas, “ordinatum habet amorem”, ou seja, “tem bem ordenado o amor”). Para falar de uma hierarquia de amores, no plural, teria de se falar de uma “ordo amorum”, ordem dos amores, ou até de uma escada do amor, “scala amoris”, conceito platônico que, não por acaso, não é retomado por Agostinho.
Se há novidade no cristianismo, ela está precisamente em que o amor ao próximo deve ser entendido como amor a todo o humano, seja da nossa tribo ou não. E se o catolicismo significa alguma coisa, é na sua acepção original como universal (significado de katholikon em grego).
Quem não poderia deixar de o notar seria o próprio Francisco, que numa carta aos bispos americanos em 11 de fevereiro passado fez questão de o dizer com todas as letras: “O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que aos poucos se estendem a outras pessoas e grupos. O verdadeiro ‘ordo amoris’ que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do Bom Samaritano, isto é, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção.”
Mais claro não poderia ser, mas Francisco prossegue ligando este conceito aos dos direitos humanos fundamentais que qualquer ateu ou agnóstico pode subscrever também. E ele tem razão: a dignidade igual e inteira de todos os humanos é para o universalismo espiritual aquilo que o cosmopolitismo é para a política.
Essa é a verdadeira coragem do ideal humano, religioso ou não. O resto é pretexto para o egoísmo e o ódio. E é por isso que é tão necessário e decisivo que ajudemos Francisco a vencer Vance.