A reunião anual da Organização para Cooperação de Xangai, conhecida no Ocidente pela sigla inglesa SCO, nunca foi exatamente um evento cardeal no calendário diplomático mundial. Até agora.
O encontro que começa neste domingo (31) na China colocará em teste um aspecto central do terremoto geopolítico decorrente da volta de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, o embaralhar das cartas dos países do Brics que importam para o equilíbro global.
Sim, o Brasil também entrou na roda de forma lateral, cortesia da campanha da família de Jair Bolsonaro para tentar salvá-lo da prisão e o subsequente ataque econômico e político de Trump ao país, mas o que vale no jogo da Casa Branca é Pequim.
Não sem razão, Trump considera os chineses a real ameaça estratégica ao domínio dos EUA no século 21. Foi o republicano quem lançou oficialmente a Guerra Fria 2.0 em 2017, na forma de uma disputa comercial que se espraioue por todos os campos possíveis.
Em sua segunda encarnação como presidente, muito mais voluntarista e ambiciosa, Trump mudou de tática, aplicando pressão sobre Pequim de formas indiretas enquanto posterga de adiamento em adiamento o tira-teima de sua guerra tarifária.
Isso é um reconhecimento da interdependência econômica entre EUA e China, que os amigos financiadores do republicano devem martelar em seu ouvido. Um rompimento abrupto é improvável por suicida.
Mas não é preciso ter lido o Projeto 2025, guia da extrema-direita que inspira a ala ideológica da Casa Branca, para saber que a meta é submeter a China ao poderio americano, tal como Esparta fez com a desafiante Atenas no século 5º a.C., para ficar na metáfora popularizada pelo influente professor de Harvard Graham Allison.
Trump promoveu uma abordagem dupla, tripla se alguém achar que o Brasil tem peso nessa equação. Buscou atrair Vladimir Putin com uma abertura política e econômica, e abriu fogo contra a Índia com suas sobretaxas a importações do país asiático.
É um movimento contraditório e hipócrita, claro, pois no caso russo o americano rifa a soberania da Ucrânia ao propor sua partilha enquanto usa o financiamento do conflito pela compra de petróleo de Moscou pela Índia como argumento para punir o país de Narendra Modi.
O efeito é igualmente dúbio em Moscou, pois no Kremlin reina a desconfiança ante as intenções de Trump, tanto que Putin renova os votos de “amizade sem limites” com Xi Jinping sempre que pode. Mas é inegável que uma real aproximação com os EUA tem mais apelo na elite russa do que a forçada parceria com a China, e é nisso que o americano aposta.
Já no caso indiano, o republicano reverteu a política de Joe Biden de cortejo explícito a Modi, líder de um país marcado pelo independentismo —compra armas da Rússia e do Ocidente, petróleo de Moscou, critica a invasão da Ucrânia, faz parte do Brics e quase foi às vias de fato com a China.
Ao que tudo indica, Trump quis fazer da Índia um exemplo do que poderia vir a fazer com os chineses, mas no processo acabou acelerando a reaproximação entre os rivais asiáticos. Ele havia começado pelas mãos de Putin na reunião do Brics em Kazan no ano passado, e agora terá um novo marco na volta de Modi à China após sete anos ausente.
Ainda há muito a acertar nas disputas fronteiriças do país, para não falar na disputa eterna entre Índia e o Paquistão hoje sob as asas da China, mas algo se move.
A ironia é que os russos, que promovem essa visão multipolar desde que o então chanceler e futuro premiê Ievguêni Primakov (1929-2015) elaborou a doutrina que leva seu sobrenome nos anos 1990, podem acabar perdendo o desejado status de parceiros iguais na eventual festa sino-indiana.
É óbvio o interesse dos parceiros no potencial energético da Rússia, tanto que eles suplantaram com folga a Europa no papel de principais compradores de petróleo do país. A mão inversa tem sua vantagens além do dinheiro, como a chegada de chips, chineses ou Ocidentais por intermediários, que acabam em mísseis e drones de Putin.
Segundo relatos não negados em Pequim, no mês passado o chanceler chinês, Wang Yi, disse à chefe da diplomacia da União Europeia, a belicista Kaja Kallas, que “não podemos deixar a Rússia perder a guerra”. Troque Rússia por China, e a frase ganha o sentido real.
Nas ruas das grandes cidades russas, carros e celulares chineses abundam. Mas não há um entrelaçamento econômico igual ao que havia entre o Ocidente e a indústria russa antes da guerra —algo que remetia à formação da elite do país com a abertura à Europa por Pedro, o Grande, na virada do século 17 para o 18.
Isso ocorria mesmo com a Doutrina Primakov em voga, decorrência da percepção de que o Ocidente não foi magnânimo ao vencer a primeira Guerra Fria, com o rebaixamento da Rússia quase à condição de Estado falido nos anos 1990 e a expansão agressiva da Otan sobre as ruínas do sistema soviético.
Essa visão gerou em 1996 o grupo dos Cinco de Xangai, embrião do que viria a ser a SCO em 2001 e o Brics oito anos depois. Mas a ideia de unidade, ainda mais o triângulo sonhado pelo então chanceler entre Moscou, Nova Déli e Pequim, sempre foi submetida aos interesses nacionais de cada membro.
Trump joga com isso, ainda que sua falta de coerência estratégica possa ao fim gestar um resultado inverso ao que desejava no princípio.