O furgão começou cedo em Windsor. Com a carroceria envelopada pela imagem de Donald Trump e o amigão Jeffrey Epstein, o veículo circulou nas ruas da cidade. A polícia só o conteve ao se aproximar do castelo. Foi um dos vários protestos carregando a mesma foto. Saudar os laços de intimidade do presidente americano com o pedófilo milionário, que se matou na prisão em 2019, é um jeito britânico de dizer “fora daqui, sir”.
A visita de Estado de Trump ao Reino Unido, recepcionado na véspera pelo rei Charles 3º, merece um olhar além dos cortejos, do banquete, dos vestidos e tiaras, enfim, de todo um aparato que fascina até o antimonarquista mais ranzinza. Como num jogo de espelhos, vale contemplar o convidado e o anfitrião.
Do ponto de vista do convidado, a visita serviu como trégua num governo caótico, despótico e atentatório a direitos e instituições para que Trump pudesse desfilar como um coroado. Desde que recebeu o convite para a sua segunda visita de Estado ao Reino Unido, o narciso da Casa Branca, filho de mãe escocesa, ansiava ser entronizado na família real britânica. Por mais descabida que seja a ideia, a vaidade contida nela não é menor.
Só que o fantasma de Epstein se infiltrou nos planos, como um bicão de festa. O príncipe Andrew, filho dileto da rainha falecida e irmão mais enrascado do rei, foi banido de saída da programação. Justo ele, único membro da dinastia de Windsor a frequentar os embalos da mansão de Mar-a-Lago, de Trump, ao lado de Epstein. O convidado também precisou se despedir do agora ex-embaixador britânico nos EUA, Peter Mandelson, antes de viajar. O diplomata foi demitido ao vir a público sua amizade com o pedófilo.
De resto, a Casa Branca enquadrou o protocolo real: nada de declarações conjuntas sobre Gaza, Ucrânia e tarifas. Nada de protestos perto do presidente (em Londres, foram razoáveis). Só uma entrevista coletiva com o primeiro-ministro Keir Starmer, coreografada para anunciar um futuro pacote de investimentos dos EUA. O propósito principal da viagem não terá sido outro senão o de permitir a Trump um mergulho na espuma do glamour.
Do ponto de vista do anfitrião, Charles sabe que pompa não conserta trinca. Seu primeiro-ministro, há 14 meses no cargo, tem 71% de desaprovação contra 21% de aprovação. Starmer apanha de todos os lados, sem avançar nas reformas econômica e social. O crescimento da ultradireita ficou evidente no recente protesto liderado por Tommy Robinson, um hooligan da política. Fã do Maga e elogiado por Elon Musk, Robinson reuniu entre 110 mil e 150 mil pessoas no centro de Londres.
A monarquia britânica pode ser vista como um anacronismo, que deu certo sob Elizabeth 2ª. Em 70 anos de trono, a rainha atuou com 15 primeiros-ministros, entre eles, Winston Churchill e Margaret Thatcher, e fez dos banquetes de Estado uma arma diplomática. Assim se converteu num símbolo de união e estabilidade. Seu filho está longe disso.
Charles faz mesuras a Trump, que chuta os pilares do Commonwealth ao pretender fazer do Canadá o 51º estado americano. Disfarça seu mal-estar com a defesa do americano sobre energia fóssil. Cala-se diante do genocídio em Gaza, evitando até o apelo humanitário. E engole a seco o desaforo de quem ameaça expulsar um dos seus filhos dos EUA, pelo fato de ter usado drogas na juventude.
É preciso muita fleuma para erguer um brinde nessa festa.