Uma semana após declarar que a Virgem Maria não é salvadora da humanidade, o papa Leão 14 disse nesta quarta-feira (12) que as famosas aparições de Jesus Cristo em um monte na França nos anos 1970 não são sobrenaturais e, portanto, devem ser descartadas como objeto de veneração.
Com isso isso, o pontífice americano eleito em maio passado parece confirmar um movimento para remover aspectos que, devido à tradição popular, foram sendo incorporados à fé cotidiana de parte dos 1,4 bilhão de católicos —a maior denominação cristã do mundo.
A nova instrução surgiu em uma carta do Dicastério da Doutrina da Fé, nome adotado em 2022 para o órgão que até 1965 era conhecido como o Santo Ofício —estabelecido em 1542 e famoso pela Inquisição.
As supostas aparições ocorreram em Dozulé, nome da cidadezinha da Normandia em que Jesus teria aparecido para Madeleine Aumont (1924-2016), uma moradora do local, 49 vezes de 1972 a 1978 —ou 50, contando uma visão de 1982 alegada pelos fiéis.
As mensagens que Cristo teria passado à mulher, na presença do padre Victor L’Horset, diziam respeito ao fim dos tempos, especificando que antes disso seria necessário erigir uma cruz gigante com 738 m de altura e 123 m de largura.
Ela corresponderia às proporções da cruz em que Jesus foi cravado pelos romanos, segundo a Bíblia. Hoje há uma cruz menor no morro em que as aparições teriam ocorrido, e um movimento de fiéis se organizou em torno do relato, com conexão especial com o chamado milagre de Fátima —as aparições reconhecidas pelo Vaticano da Virgem na cidade homônima em Portugal.
“O fenômeno das alegadas aparições deve ser reconhecido, definitivamente, como não sobrenatural em sua origem, com todas as consequências que fluem dessa determinação”, disse o cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, prefeito do dicastério, o mais antigo dos 16 da Cúria Romana.
É a culminação de cinco décadas de polêmica. Por vezes, o Vaticano admite a natureza milagrosa do fenômeno, como em Fátima ou em Guadalupe, no México, onde a Virgem teria aparecido em 1542.
Mas há especial temor em torno de movimentos que se tornem cultos, como era o caso de Dozulé, que tem orações específicas elaboradas em nome do que chama de Gloriosa Cruz ou Cruz do Amor, além do caráter apocalíptico da veneração.
Numa aparição relatada em 1974, Jesus teria dito que a cruz e um santuário deveriam ser construídas até o fim de 1975, pois esse seria o último Ano Santo, em referência à celebração do catolicismo que ocorre a cada 25 anos.
“Evidentemente, este suposto anúncio não se cumpriu”, ironizou o texto, que descreve o processo de apuração das alegações e reforça que apenas a fé em Cristo importa, descartando a fixação de datas para o fim do mundo, que na escatologia católica será um período anterior à volta de Jesus à Terra.
“A oração, o amor aos sofredores e a veneração da cruz continuam sendo meios autênticos de conversão, mas não devem ser acompanhados por elementos que induzam à confusão ou por afirmações que pretendam uma autoridade sobrenatural sem o discernimento eclesial”, diz a carta, endereçada a Jacques Habert, bispo de Bayeux-Lisieux, responsável por Dozulé.
A medida irá frustrar os peregrinos e certamente o bispo, que costuma organizar a estrutura para recebê-los, com o movimento associado no comércio religioso em geral. Não há uma estatística, dado que é um sítio de veneração menos famoso que Fátima ou Lourdes (França), mas anúncios pontuais indicam que são alguns milhares de fiéis todos os anos.
No anúncio da semana passada, Leão 14 pôs fim de forma algo controversa outra popular leitura da fé católica, que é a ideia de Maria como “corredentora da humanidade” ao lado do filho, Jesus.
O conceito chegou a ser esposado pelo hoje santo João Paulo 2º em seu pontificado (1978-2005), que colocou a devoção mariana tão em evidência que havia o M de Maria em seu brasão, além do lema “Todo seu”, em homenagem à Virgem.
O novo papa com isso parece buscar depurar heterodoxias e sugere um reinado calcado em uma abordagem mais ortodoxa da fé, ainda que seja muito cedo para tirar conclusões de seu rumo. Ao mesmo tempo, acenou às novas gerações com a canonização, já prevista, do “santo millennial” Carlo Acutis.




