A vida de Chen Ru-fen mudou completamente. A investidora anjo saiu de salas de reuniões com ar-condicionado para as ruas sufocantes de Taiwan e, em vez de ajudar startups, agora faz campanha para resgatar seu território do que acredita ser uma tentativa sorrateira de anexação chinesa.
Assim como milhares de outros ativistas, ela sofreu uma derrota esmagadora em sua primeira batalha. Um referendo de anulação de mandatos sem precedentes no mês passado não conseguiu destituir um único legislador do KMT (Kuomintang), maior partido no parlamento de Taiwan e acusado por ativistas como Chen de minar a democracia para que a China tome a ilha.
“Pensei que voltaria à minha vida normal após a votação”, diz ela. “Mas agora temos que continuar. Se não os detivermos, perderemos nossa soberania e nossa liberdade para sempre.”
Sua ansiedade reflete o crescente temor de que o PCC (Partido Comunista Chinês) possa estar se aproximando cada vez mais de tomar a ilha que há muito tempo afirma ser parte da China. O líder do gigante asiático, Xi Jinping, declarou repetidamente que a questão de Taiwan “não pode ser transmitida de geração para geração”.
No Ocidente, as preocupações têm se concentrado no risco de uma invasão chinesa —comandantes militares dos Estados Unidos alertam que as manobras do Exército de Libertação Popular chinês ao redor de Taiwan não são mais exercícios, mas “ensaios” para um ataque.
Muitos taiwaneses, porém, estão muito mais preocupados com a possibilidade de Pequim subverter a ilha a partir de dentro, aproveitando-se de laços culturais e econômicos de longa data, cultivando colaboradores e marginalizando o governo eleito.
Desde que o PDP (Partido Democrático Progressista), que Pequim classifica de separatista, ganhou a Presidência em 2016, o PCC intensificou seus esforços para conquistar siglas, grupos de interesse e segmentos da sociedade mais receptivos a relações mais estreitas.
“A China tem um longo histórico de explorar a complexa história e cena política de Taiwan para minar sua unidade interna”, diz Scott Harold, especialista em Taiwan da Rand Corporation, uma think-tank sediada em Washington. “E Taiwan luta com a coesão política e social de que precisa para se tornar resiliente contra isso.”
O território tem uma identidade nacional fragmentada, forjada pela ideologia nacionalista chinesa do Kuomintang, pelos laços históricos da ilha com a China e por seu isolamento diplomático internacional.
Embora os residentes originais da ilha e os descendentes daqueles que fugiram para lá após a revolução comunista em 1949 rejeitem esmagadoramente a unificação com a China, as discordâncias estão se tornando mais públicas e agressivas sob a crescente pressão de Pequim.
“A China e observadores internacionais olham para isso e dizem que os eleitores de Taiwan apoiaram a postura pró-China”, diz Shelly Hsu, uma headhunter de Taipei que participou da campanha do referendo.
Hsu acredita que Xi está determinado a tomar Taiwan para se manter no poder, e que a maneira mais barata de fazê-lo “é assustar os taiwaneses para que se rendam”. Como Chen, ela vê a derrota na votação como um momento existencial para a ilha. “Devemos abandonar nossas ilusões e nos preparar para a batalha. Aqueles sem um segundo passaporte deveriam começar a se exercitar e estocar comida”, diz.
Para ela e outros, o KMT, que lutou contra os comunistas por décadas na primeira metade do século 20, é agora melhor descrito como um partido de traidores e uma quinta-coluna. “O KMT é companheiro de viagem do PCC, eles são o maior agente do PCC em Taiwan”, diz Hsu.
O partido, por sua vez, rejeita veementemente ser descrito como “pró-China” e se declara patriota. No entanto, a corrente de nacionalismos conflitantes no território, antes oculta, agora veio à tona. “Nunca vi Taiwan tão dividido”, diz Lev Nachman, cientista político da Universidade Nacional de Taiwan.
A abordagem de Xi em relação à ilha está em conformidade com um antigo manual do PCC que envolve uma mistura de sedução, engano e coerção para controlar ou derrotar seus adversários.
Por meio do chamado trabalho de Frente Unida, o partido constrói relacionamentos com membros de minorias étnicas e comunidades religiosas na China, além de políticos, empresários e líderes de opinião no exterior para garantir que esses grupos ajudem a promover seus interesses.
O próprio pai de do atual líder chinês, Xi Zhongxun, empregou táticas semelhantes em 1941, quando pediu ao funcionário de inteligência Bu Lu que lidasse com um comandante do KMT que estava causando problemas aos comunistas na província noroeste de Shaanxi. Bu ofereceu jantares e bebidas ao alvo até que seus superiores ficassem desconfiados e o transferissem. Xi elogiou Bu por ter “vencido sem disparar um tiro”.
A abordagem atingiu seu auge na revolução de 1949, quando tropas do PCC persuadiram o comandante do KMT em Pequim a entregar a capital chinesa sem luta. Nos últimos anos, estudiosos chineses têm aconselhado o partido a usar este modelo para conquistar Taiwan.
Hu Xijin, um propagandista chinês e ex-editor do jornal Global Times, de propriedade do PCC, disse que a China deveria libanizar Taiwan, em suas palavras —incitar conflitos internos que mergulhariam a sociedade em um estado de caos para Pequim assumir o controle.
Apesar da recusa de Xi em conversar com o governo do PDP de Taiwan, ele está pressionando por políticas de “desenvolvimento integrado” que buscam incorporar Taiwan à sociedade e economia da China pouco a pouco.
Após a vitória do PDP, ele interrompeu o fluxo de turistas chineses para Taiwan, bloqueou as exportações agrícolas taiwanesas para a China e fez acordos seletivos com políticos locais do KMT para comprar seus produtos agrícolas.
A estratégia de dividir para conquistar levou empresas de turismo e agricultores taiwaneses a instar seu próprio governo a adotar uma postura mais branda em relação a Pequim. “A renda da nossa família diminuiu porque de repente não podíamos mais vender para nosso maior mercado, a China continental”, diz Weng Chi-hung, um agricultor de pomelo no sul de Tainan. “O PDP é culpado por isso.”
Departamentos do regime chinês regularmente pagam para que líderes de aldeias taiwanesas visitem a China antes das eleições em Taiwan —convites que muitos aceitam em violação à lei local, levantando preocupações sobre interferência política, já que esses funcionários desempenham um papel fundamental nas campanhas eleitorais nas bases.
Pequim ainda oferece apoio financeiro para jovens taiwaneses estabelecerem negócios na China e organiza peregrinações a templos do país que têm ligações históricas com divindades taiwanesas, visando fortalecer laços emocionais e culturais com o que consideram a “pátria-mãe” do território.
O PCC também tem como alvo os militares de Taiwan. O partido, por exemplo, convidou veteranos que lutaram com o KMT contra os comunistas para as celebrações do 100º aniversário da Whampoa, a academia militar que treinou as primeiras gerações de oficiais —tanto nacionalistas quanto comunistas.
Essa apropriação das raízes chinesas dos militares do KMT complica os esforços de Taiwan para criar Forças Armadas totalmente comprometidas com a defesa contra um Exército invasor chinês.
Ao mesmo tempo, Pequim recruta oficiais em serviço como espiões. “Temos um problema massivo com a infiltração em nossa força agora”, diz um alto funcionário do departamento de investigação do Ministério da Justiça. Em 2024, o número de taiwaneses processados por acusações de espionagem para a China saltou para 64, acima de apenas dez em 2022, enquanto pelo menos dois funcionários aposentados foram indiciados.
Isso é combinado com uma campanha de desinformação. O Departamento de Segurança Nacional, a agência de inteligência de Taiwan, disse em janeiro que a quantidade de desinformação que a China distribuiu no território aumentou 60% no último ano.
Uma área de particular preocupação são os aplicativos de redes sociais amplamente utilizados por adolescentes e até alunos do ensino fundamental. “Embora outras democracias também observem efeitos adversos de aplicativos chineses como o TikTok, o impacto é muito mais profundo aqui porque o conteúdo viaja muito mais facilmente devido ao idioma compartilhado”, diz Eric Hsu, pesquisador do Doublethink Lab, uma organização sem fins lucrativos taiwanesa que pesquisa desinformação chinesa e operações de influência.
O Escritório de Assuntos de Taiwan de Pequim mantém um controle rigoroso sobre empresários e executivos taiwaneses que vivem e trabalham na China. Quase 20 empresários disseram ao Financial Times, ao longo de vários anos, que funcionários do escritório abordam representantes de suas associações empresariais antes de eleições em Taiwan, buscando promessas de que doarão para partidos que não sejam o PDP e organizarão viagens de volta a Taiwan para mobilizar o voto anti-PDP.
O PCC também tem fomentado partidos políticos. Em janeiro, o Ministério do Interior de Taiwan pediu ao Tribunal Constitucional que decidisse sobre a dissolução do PPUC (Partido de Promoção da Unificação Chinesa), criado por Chang An-lo, com base no fato de que ele recebeu ilegalmente dinheiro da China e violou as leis de segurança nacional taiwanesas.
Grupos abertamente pró-unificação como o PPUC não tiveram impacto nas eleições de Taiwan, já que apenas uma pequena minoria de taiwaneses consideraria se tornar parte da China, mesmo como uma opção futura.
Mas o KMT é uma questão diferente. Depois de governar Taiwan por quatro décadas, o partido começou a permitir uma transição gradual para a democracia no final dos anos 1980 e tornou-se uma das duas principais forças políticas do território, junto com o PDP.
Assim como o PCC, o KMT sustenta que Taiwan faz parte de uma nação chinesa maior, embora os antigos inimigos discordem sobre como definir isso. Desde que um presidente do KMT visitou a China pela primeira vez, em 2005, os dois partidos têm mantido diálogo regular.
Para alguns, esse relacionamento tornou-se próximo demais nos últimos anos, com políticos proeminentes do KMT sendo acusados de repetir a retórica do PCC durante visitas a Pequim.
Wang Hung-wei, um dos legisladores alvo do referendo, falou mal do governo de Taiwan em um programa de televisão estatal chinês em 2021, enquanto o ex-presidente e líder do KMT, Ma Ying-jeou, afirmou durante a última campanha eleitoral presidencial que Taiwan era pequeno e fraco demais para se defender —e instou seus compatriotas a “confiar em Xi Jinping”.
Tais comentários já foram descartados como postura política ou comportamento desajeitado ou sentimental. Mas ganharam maior significado em janeiro do ano passado, quando o KMT conquistou o maior número de assentos no parlamento de Taiwan.
Semanas após assumir o cargo, a sigla aliou-se a um partido menor para aprovar uma série de projetos de lei altamente controversos, incluindo uma expansão dos poderes parlamentares às custas do Executivo e do Judiciário.
Depois que o tribunal superior de Taiwan considerou essas emendas inconstitucionais, o KMT e seus aliados aumentaram o quórum necessário para o tribunal deliberar e bloquearam novos juízes nomeados pelo presidente. Isso deixou o tribunal sem quórum —e, portanto, paralisado.
Outras manobras incluíram cortes orçamentários sem precedentes e uma redistribuição de fundos do governo central para os governos locais, dos quais a maioria é administrada pelo KMT.
O partido também propôs um projeto de lei controverso que restringiria o uso militar de Taiwan para repelir incursões chinesas sob a justificativa de que isso reduz o risco de conflito entre as duas partes que, segundo o projeto, tecnicamente ainda estão em guerra uma com a outra.
As manobras da oposição para paralisar o governo do presidente Lai Ching-te provocaram confronto com o PDP, mas também inflamaram o público em geral.
Em maio de 2024, quando o KMT votou sobre a expansão dos poderes do Legislativo, dezenas de milhares de manifestantes se reuniram do lado de fora do Parlamento. Dirigindo-se à multidão, Wu Rwei-ren, um proeminente cientista político e historiador, chamou a medida de “golpe parlamentar” e acusou o KMT de “coordenar internamente em apoio a uma anexação chinesa de Taiwan”.
Legisladores do PDP disseram que a oposição estava usurpando o poder seguindo um roteiro fornecido por Xi Jinping. Embora o KMT tenha rejeitado tais acusações, a retórica pegou e a campanha para petição do referendo de legisladores da sigla rapidamente ganhou força.
A investidora-anjo e ativista Chen esteve envolvida desde o início. “Eles estão esvaziando nossos tribunais, estão minando nossa democracia. Eles ecoam a maneira como a China fala”, diz ela.
Em Hsinchu, centro da vital indústria de semicondutores de Taiwan, a professora de direito Carol Lin liderou uma campanha contra Cheng Cheng-chien, o legislador do KMT que a derrotou na disputa por uma cadeira em janeiro de 2024.
Lin apresentou uma queixa criminal contra Cheng, alegando que ele recebeu ilegalmente financiamento de campanha do governo chinês, e um grupo especial de promotores para casos de segurança nacional abriu uma investigação. “Cheng é provavelmente o caso com as evidências mais claras de legisladores do KMT em conluio com a China”, diz Lin. Cheng nega as acusações.
O presidente Lai fez uma turnê pela ilha, discursando ostensivamente com o objetivo de unir a nação contra a ameaça da China, mas sua retórica não deixou espaço para aqueles com laços emocionais com o país —ele comparou a busca pela unidade nacional ao processo de forjar ferro, durante o qual a nação deve “remover impurezas”.
O KMT respondeu afirmando que o PDP é formado por “comunistas verdes”, em referência à cor do partido, e comparou a sigla com os nazistas, chamando Lai de ditador.
A China foi rápida em aproveitar as brigas internas. A mídia estatal e contas de mídia social afiliadas ao Escritório de Assuntos de Taiwan têm alardeado o voto como uma rejeição às tendências “ditatoriais” de Lai.
Um coro crescente de vozes está alertando que o aprofundamento da divisão interna é exatamente o que o PCC precisa. Na semana passada, o ex-deputado do PDP Lin Chuo-shui alertou os membros de seu próprio partido contra o excesso de zelo na identificação de supostos colaboradores chineses.
Os otimistas acreditam que Taiwan se recomporá. James Chen, cientista político da Universidade Tamkang que apoia o KMT, vê os resultados do referendo como uma demonstração do julgamento e maturidade dos eleitores taiwaneses. “O PDP e o presidente Lai deveriam desenvolver melhores abordagens para realmente unificar o país”, diz ele, advertindo que se a oposição não atender às demandas do público, “eles não conseguirão retornar [à presidência] em 2028”.
Mas Chen, a ativista, não se contenta mais em simplesmente depositar sua fé nos políticos. “O que o referendo nos ensinou é que ainda há muito a ser feito para tornar nossos cidadãos mais resilientes contra a interferência chinesa”, diz ela.
Um próximo passo que ela e seus colegas ativistas estão considerando é concorrer a cargos eletivos no nível local. “Nossos chefes locais e administradores de bairro frequentemente se tornaram ferramentas de operações de influência chinesa”, alerta. “É hora de nós, cidadãos, tomarmos isso com nossas próprias mãos”.