Conclave não é uma disputa entre liberais e conservadores – 06/05/2025 – Cotidiano

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O conclave ainda nem começou, mas já vem sendo interpretado como um embate entre “progressistas” e “conservadores”, emulando as clivagens da política mundana. Essa leitura é sedutora. Rótulos simplificam e organizam o debate. Mas, neste caso, traduzem mais os clichês de quem analisa do que as tensões reais que atravessam o coração da Igreja.

As diferenças entre os cardeais não obedecem aos mapas mentais da política secular, tampouco às geografias da polarização ideológica. Raros se apresentam como “de esquerda” ou “de direita”. Poucas intervenções podem ser classificadas com clareza como “reformistas” ou “tradicionalistas”. Isso não se explica apenas pelo decoro exigido pelo processo.

As disputas em curso são, antes de tudo, eclesiológicas. Dizem respeito a modos distintos de compreender a estrutura, a autoridade e a missão da Igreja. Quando há facções, elas não refletem guerras culturais. Expressam visões contrastantes sobre como preservar e traduzir a identidade católica num mundo em mutação acelerada.

Essas tensões se organizam, sobretudo, em três frentes: sinodalidade, autoridade eclesial e relação entre doutrina e prática pastoral.

A sinodalidade —conceito que propõe uma Igreja mais atenta às vozes locais do que aos corredores do Vaticano— expressa um modelo de governo participativo, promovido por Francisco como marca de seu pontificado. Muitos cardeais, especialmente na Ásia e na América Latina, veem nela um caminho fecundo para enraizar a Igreja nas realidades locais.

Outros, com um perfil mais tradicional, temem que essa lógica comprometa a clareza doutrinal e enfraqueça a unidade eclesial. O próprio termo sinodalidade permanece ambíguo: pode significar tanto “consulta” quanto “deliberação”. Além disso, a representação da Igreja de um país, embora tenha certa autonomia para atuar, deve submeter suas iniciativas à consulta de representantes no Vaticano.

A segunda tensão diz respeito à autoridade na Igreja. A constituição “Praedicate Evangelium”, que reformou a Cúria Romana, em 2022, fortaleceu o poder do papa enquanto buscava ampliar a participação dos leigos —os católicos comuns que não pertencem à hierarquia— e descentralizar a evangelização. O resultado é ambíguo.

Para alguns, trata-se de uma modernização necessária. Para outros, esse arranjo esvazia a autoridade episcopal (do sacerdote) de sua dimensão espiritual, convertendo-a em função gerencial, quase burocrática. A tensão repõe, em novas bases, o velho dilema entre uma Igreja mais centralizada em Roma e outra mais enraizada nas realidades locais.

A terceira linha de fricção contrapõe fidelidade doutrinal e abertura pastoral, ou seja, a possibilidade de atualizar o modo como a Igreja lida com temas como sexualidade, casamento e identidade de gênero. Em documentos como “Amoris Laetitia” (sobre a família) e “Fiducia Supplicans” (sobre a bênção de casais em situações irregulares), Francisco trouxe essa tensão ao centro do debate.

Alguns temem que a ênfase na inclusão enfraqueça a firmeza da doutrina moral, gerando confusão sobre o que é permitido ou não pela Igreja. Já os defensores de uma atualização argumentam que acolher quem vive em desacordo com os preceitos não relativiza a verdade, mas permite vivê-la com misericórdia e atenção às realidades concretas.

Trata-se de aplicar os princípios morais com discernimento pastoral, sem abrir mão da doutrina. É nessa linha que se fala, por exemplo, de práticas pastorais ousadas, como acolher fiéis divorciados ou casais homoafetivos, mesmo quando a devoção pessoal continua ancorada em símbolos tradicionais —como a exaltação da família heteronormativa, a centralidade da figura paterna ou a valorização de modelos morais rígidos. O cuidado pastoral, nesse caso, não nega a norma, mas busca caminhos para aplicá-la sem condenação.

A composição geográfica do Colégio Cardinalício acentua especialmente as fraturas em torno da sinodalidade. O chamado Sul Global nunca esteve tão representado. Cardeais como Luis Antonio Tagle, das Filipinas, Fridolin Ambongo, da República Democrática do Congo, e Dieudonnè Nzapalainga, da República Centro-Africana, trazem consigo outras urgências —como o diálogo inter-religioso, a justiça social e a evangelização em contextos frágeis. Em muitos casos, combinam entusiasmo por estruturas mais participativas com posturas conservadoras em temas morais.

É nesse ponto que o binarismo “liberais versus conservadores” se mostra não apenas inadequado, mas enganoso. Um cardeal africano como Fridolin Ambongo pode ser teologicamente conservador e, ao mesmo tempo, defensor de formas locais de sinodalidade.

Já um europeu como Matteo Zuppi combina forte devoção litúrgica com abertura a práticas pastorais inclusivas. Os alinhamentos cortam em diagonal qualquer tentativa de classificação binária, como fissuras tectônicas que percorrem silenciosamente o corpo da Igreja.

Essa complexidade se traduz nos nomes que circulam como possíveis sucessores de Francisco. O cardeal filipino Luis Antonio Tagle e o italiano Matteo Zuppi são identificados com a continuidade da agenda pastoral do atual papa: defendem uma Igreja aberta à escuta, pastoralmente inclusiva, mas ainda fiel à doutrina. Em contraste, nomes como Pietro Parolin, atual secretário de Estado do Vaticano, e o húngaro Péter Erdo simbolizam uma abordagem mais institucional, voltada à estabilidade da Cúria e à preservação da ortodoxia.

Já o congolês Fridolin Ambongo representa um terceiro caminho: um catolicismo africano profundamente moralista, mas entusiasta da sinodalidade e atento às desigualdades globais. Em vez de reforçar a clivagem entre progressistas e conservadores, esses perfis revelam uma Igreja atravessada por alinhamentos mais complexos, que combinam tradição e inovação de formas inesperadas.

É nesse terreno que se dará a escolha do próximo papa. O conclave não decidirá apenas um nome, mas qual modelo de Igreja será legitimado: uma Igreja centrada na autoridade romana ou uma Igreja enraizada nas margens do mundo católico; uma instituição que reafirma categorias morais herdadas ou uma comunidade disposta a traduzi-las à luz de contextos plurais. No fundo, trata-se de uma tensão entre modernidade e geografia —entre uma visão universalista fundada na tradição europeia e uma gramática eclesial moldada pelo Sul Global.



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