Estou em Tarrafal, na Ilha de Santiago, em Cabo Verde. A memória que o nome desta terra evoca, pelo menos para portugueses e africanos de língua portuguesa, é medonha. Foi aqui que no ano de 1936 a ditadura do Estado Novo, de António Salazar, estabeleceu um campo de concentração para os seus adversários.
Em primeiro lugar vieram os anarquistas, que dominavam ainda o movimento operário do país e eram uma das principais forças de oposição à ditadura. Também eram combatentes diretos, através da Federação Anarquista Ibérica, na Guerra Civil da Espanha, que começou no mesmo ano da inauguração do “Campo da Morte Lenta”, como viria a ser conhecido.
A decapitação do movimento anarquista em Portugal e Espanha era um objetivo essencial para os fascismos europeus. Ambos os lados entendiam o que estava em jogo. Anarquistas portugueses, liderados por Emídio Santana, tentaram matar Salazar num atentado à bomba em 1938. A ditadura respondeu enviando companheiros seus como Mário Castelhano e Acácio Tomás de Aquino para esta ilha em Cabo Verde.
Depois da Guerra Civil espanhola e da Segunda Guerra Mundial, chegou a vez dos comunistas. E depois dos comunistas, vieram para cá os dirigentes dos movimentos de libertação africanos que lutavam contra o colonialismo português. E, finalmente, o campo ainda foi usado pelo regime de partido único após a independência de Cabo Verde.
Depois de meio século como lugar de encarceramento e morte —da infame “frigideira”, onde os presos eram exauridos por insolação, ao médico que dizia ter como única função assinar certidões de óbito— o campo de concentração é hoje um museu.
No entanto, o que a maior parte das pessoas desconhece é que o campo não é em Tarrafal, mas na localidade vizinha de Chão Bom, a um par de quilômetros daqui. O paradoxo não é só o de um campo de concentração num lugar chamado Chão Bom. É também o de que Tarrafal, tão perto daquilo que foi um um inferno na terra para tantos lutadores pela liberdade, é uma terra paradisíaca.
Era impossível para esses resistentes, encerrados no campo, imaginarem que hoje Tarrafal é uma aprazível cidade que muitos turistas internacionais conhecem pelas magníficas praias e praças pitorescas. Este é um daqueles lugares em que a história não nos deixa desviar o olhar. Por isso não há outra maneira senão encará-la de frente.
A primeira vez que ouvi falar da ideia de tornar Tarrafal como a sede de um festival literário de língua portuguesa foi pela voz de José Luís Tavares, poeta e tradutor cabo-verdiano (apesar da coincidência de nomes, não há parentesco entre nós) num festival no Brasil —a FliParaíba, em João Pessoa, com curadoria de José Manuel Diogo, que foi colunista desta Folha.
José Luís tem toda a razão: o Tarrafal, lugar de memória, merece também ser lugar de imaginação. Cabo Verde, enquanto ponto de encontro da Europa com a África e as Américas, tem aqui o lugar de um diálogo entre tempos e continentes que urge fazer.
Não sei se o mundo precisa de mais dois festivais literários. Mas de um precisa, e é aqui. Agradeçam ao Tavares —não eu, o José Luís, da poesia, da palavra, e desta terra.