A Suprema Corte dos Estados Unidos começou a ouvir argumentos nesta quarta-feira (15) de uma disputa sobre o desenho dos distritos eleitorais da Louisiana, um caso que pode alterar profundamente a Lei de Direitos de Voto, promulgada em 1965 para prevenir discriminação racial no processo eleitoral, e permitir que raça seja um elemento
A legislação, assinada pelo presidente Lyndon Johnson ao lado de figuras de peso do movimento de direitos civis no país, como Martin Luther King Jr. e Rosa Parks, tornou ilegal a discriminação por raça nos processos eleitorais —alguns estados, em particular no sul do país, haviam criado uma série de barreiras para dificultar o acesso de pessoas negras ao voto.
Diferentemente do Brasil, onde eleitores em cada estado votam sem divisão geográfica interna para eleger deputados federais, membros da Câmara dos EUA são escolhidos para representar distritos específicos.
Os limites territoriais desses distritos são definidos pelo Legislativo de cada estado com o objetivo, em teoria, de dividir a unidade da Federação em blocos com o mesmo número de eleitores.
É nesse processo que ocorre o chamado gerrymandering —prática de redesenhar os mapas distritais a fim de criar maiorias artificiais e ajudar a eleger deputados que, do contrário, não venceriam a disputa.
O gerrymandering é comum nos EUA e ocorre porque, no sistema bipartidário americano, eleitores raramente mudam de voto ao longo dos anos —sendo possível ao partido no poder identificar onde moram seus apoiadores e, dessa forma, diluir os eleitores do rival enquanto concentra os seus.
Como eleitores negros são majoritariamente identificados com o Partido Democrata, a raça é um dos fatores que acabam sendo considerados no redesenho de distritos para criar essas maiorias artificiais de ambos os lados do espectro político.
A questão tem sido amplamente debatida no país e se transformou em guerra política em estados com claras maiorias de um ou de outro lado da contenda, como Califórnia e Texas —mudanças do tipo miram particularmente as eleições de meio de mandato, em 2026, que podem consolidar ou derrubar a maioria republicana no Senado e na Câmara.
O caso da Louisiana tem origem em 2020, quando os novos dados do Censo nacional trouxeram a nova composição populacional do estado e abriram discussões sobre o redesenho distrital. Na ocasião, a pesquisa demográfica mostrou que negros compunham um terço da população total de Louisiana. O Legislativo do estado à época, no entanto, ao repensar o mapa eleitoral, manteve apenas 1 dos 6 distritos eleitorais com maioria negra.
Dois grupos de eleitores negros entraram na Justiça contra a medida, argumentando que o novo mapa eleitoral violava a Lei de Direitos de Voto. A seção 2 da legislação proíbe discriminação de raça no processo eleitoral, incluindo no desenho de mapas eleitorais que dilua a influência de grupos minoritários, mesmo que não exista prova de intenção de cunho racial.
Entretanto, um redesenho posterior, que incluiu um segundo distrito de maioria negra no estado, foi alvo de outro processo, desta vez de um grupo de eleitores brancos, sob o argumento de que o novo mapa era resultado de gerrymandering ilegal com base em raça —uma corte inferior havia concordado com esta interpretação, alvo agora de discussões na Suprema Corte.
O Partido Republicano atualmente detém uma estreita maioria na Câmara federal americana. Uma decisão invalidando a seção 2 poderia permitir ao republicanos reconfigurar até 19 distritos da Câmara, de acordo com um relatório dos grupos de defesa Fair Fight Action e Black Voters Matter Fund, afiliados aos democratas. O governo do presidente Donald Trump é favorável a reconsiderações da lei.
A Suprema Corte ouve argumentos do caso pela segunda vez neste ano. Também o fez em março, mas em junho evitou uma decisão e ordenou outra rodada de considerações.
Inicialmente, Louisiana havia apelado da decisão a favor do grupo de eleitores brancos e argumentou, em março, em favor do grupo de eleitores negros. Agora, porém, mudou sua posição e insta os juízes a proibir completamente o desenho de mapas com cunho racial.
O tribunal máximo do país é composto por e uma maioria de 6 juízes conservadores contra 3 liberais. O caso dá aos juízes conservadores uma chance de enfraquecer a seção 2, um elemento central da Lei dos Direitos de Voto —o dispositivo se tornou um baluarte contra a discriminação racial em eleições após decisões anteriores da mesma Suprema Corte que enfraqueceram essa característica da lei nos últimos anos.
Janai Nelson, presidente do Fundo de Defesa Legal da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), é uma das pessoas que apresenta argumentos na Suprema Corte nesta quarta.
Ela iniciou suas declarações dizendo aos juízes que o mapa eleitoral inicialmente desenhado pela legislatura da Louisiana, controlada pelos pelo Partido Republicano, havia diluído o poder de voto dos negros em favor de um mapa que daria ao eleitorado branco do estado um “controle enraizado”.
A presidente da associação defendeu também, com base em decisões anteriores da própria Suprema Corte, que o segundo mapa, que havia criado o segundo distrito de maioria negra, era constitucional.
Alguns dos juízes conservadores, começando com Clarence Thomas, fizeram uma série de perguntas a ela.
Brett Kavanaugh, questionando Nelson, afirmou que a Suprema Corte “em vários contextos disse que remédios baseados em raça são permissíveis por um período de tempo —às vezes por um longo período, décadas em alguns casos— mas que não deveriam ser indefinidos e deveriam ter um ponto final”.
Já a juíza liberal Elena Kagan fez perguntas com foco no impacto prático de eventual decisão que derrubasse ou reduzisse o escopo da seção 2. “Se a seção 2 deixasse de operar, da forma como você [Janai Nelson] descreveu, para prevenir a diluição do voto no desenho de distritos, o que poderia acontecer? Quais seriam os resultados na prática?”
“Eu acho que os resultados seriam bastante catastróficos”, afirmou a presidente da NAACP. Ela também afirmou que a diversidade racial nos EUA existia justamente “por causa de litígios que forçaram a criação” de distritos de maioria negra.