O refúgio que a Argentina deu a nazistas após a Segunda Guerra Mundial é uma pílula difícil de engolir, principalmente por parte dos seguidores do peronismo, uma vez que foi o general Perón (1895-1974) que abriu as portas do país para os criminosos de guerra após o fim do conflito.
A cada descoberta o país se vê confrontado com uma sombra que insiste em não desaparecer. O episódio mais recente veio por meio de um anúncio imobiliário em Mar del Plata. Nas fotografias de uma casa à venda aparecia, pendurado entre duas lâmpadas numa sala de estar, o quadro “Retrato de uma Dama”, do pintor italiano Giuseppe Vittore Ghislandi (1655-1743). A tela era considerada desaparecida desde 1946, depois de ter sido saqueada pelo regime de Hitler.
A obra pertenceu ao marchand judeu holandês Jacques Goudstikker, forçado a se desfazer de mais de 1.100 peças sob pressão do aparato nazista. Entre os que se beneficiaram dessa pilhagem estava Hermann Göring, um dos homens fortes do regime.
Em maio de 1940, Goudstikker tentou fugir da ocupação alemã. Levava consigo um caderno no qual havia registrado 1.400 obras de sua coleção. Durante a viagem, porém, caiu no porão do navio e morreu. Décadas depois, esse caderno seria a principal prova jurídica usada para recuperar parte do espólio. Em 2006, após uma longa batalha, o Estado holandês restituiu 202 obras. Outras, como o “Retrato de uma Dama”, continuavam sumidas.
O quadro ressurgiu na Argentina porque a casa em que estava pertence a uma das filhas de Friedrich Gustav Kadgien (1907-1978), advogado alemão, membro das SS desde 1935, responsável por extorquir dinheiro de comerciantes judeus para financiar a indústria bélica. Kadgien escapou da Alemanha derrotada até fixar-se na Argentina, onde morreu sem ser julgado.
A Justiça local realizou uma busca na residência em Mar del Plata, mas a tela já não estava lá. O paradeiro atual da obra segue incerto, e os herdeiros de Goudstikker anunciaram medidas legais para recuperá-la.
A presença de nazistas na Argentina não é lenda. Adolf Eichmann, um dos principais arquitetos da chamada Solução Final, chegou em 1950 e viveu sem ser incomodado até ser sequestrado pelo Mossad em maio de 1960. Levado a julgamento, foi condenado à morte e executado em 1962. Erich Priebke, responsável pelo massacre das Fossas Ardeatinas, em Roma, onde 335 civis foram fuzilados em 1944, viveu décadas em Bariloche e só em 1995 teve sua presença revelada por uma equipe de televisão. Foi extraditado e condenado na Itália em 1996.
Estima-se que centenas de nazistas entraram no país com passaportes falsos. Em 2025, cerca de 1.850 documentos foram colocados online, dando acesso público a relatórios policiais e decretos secretos sobre a entrada de criminosos alemães, incluindo informações sobre Josef Mengele (1911-1979), o “anjo da morte” de Auschwitz, que também viveu anos no país.
A fotografia de um anúncio imobiliário em que surge uma obra desaparecida há 80 anos obrigou o país a encarar uma herança amarga, a de uma Argentina que ainda não assimilou o fato de ter acolhido criminosos de guerra.
A saga por uma tela roubada lembra que o país deve reconciliar-se com um passado que, embora incômodo, continua a assombrar.
