Na manhã de quarta-feira (16), Mahmoud aventurou-se para fora das ruínas de Nuseirat, uma cidade no centro da Faixa de Gaza, até um mercado improvisado que surgiu durante a guerra. Eram 6h da manhã e o Hamas já estava no comando, com homens mascarados e armados fazendo uma vigília e comerciantes instruídos a manter a rua livre para o tráfego.
Por volta das 8h, um trator apareceu e limpou alguns escombros para um pequeno comboio de SUVs, e, às 8h30, homens com os familiares uniformes de segurança do grupo terrorista —jaquetas de poliéster barato com forro de pele falsa— estavam operando um posto de controle.
“No terreno, de A a Z, não há dúvida: o Hamas está no comando”, disse Mahmoud, que dirigiu para o norte após o mercado e encontrou quatro postos de controle da facção, sendo solicitado a mostrar identificação em cada um deles. Ele se recusou a usar seu sobrenome para falar livremente sobre o grupo.
Após dois anos de guerra com Israel, e apenas quatro dias após um cessar-fogo mediado pelos Estados Unidos, o Hamas busca transmitir uma mensagem por toda Gaza: Israel está recuando, e o território está de volta às mãos do grupo terrorista.
A névoa da guerra mal se dissipou, tornando difícil determinar quanto da rápida reimplantação do Hamas visa mascarar o medo de ter perdido o controle de um território que a facção governou com mão de ferro desde 2007.
Mas para onde quer que olhem, os moradores veem os sinais, disseram alguns deles ao Financial Times. Nas redes sociais, veem vídeos do Hamas executando publicamente membros de clãs rivais que prosperaram durante a guerra —seja lucrando, colaborando com Israel ou simplesmente expandindo seu território enquanto os combatentes se escondiam em seus túneis.
Nas ruas, veem membros do Hamas se espalhando para manter a ordem, se não a lei. O Ministério da Educação promete reiniciar as escolas; o Ministério da Saúde, identificar corpos não reivindicados, empilhados em necrotérios e sepulturas sem identificação.
Nas telas de televisão, veem um desfile de picapes impecavelmente arrumadas e homens com fuzis de assalto e uniformes inesperadamente limpos após meses de guerra —uma demonstração de força limitada, mas potente, projetada para transmitir uma imagem de vitória enquanto o Hamas emerge de seu refúgio subterrâneo.
“Carros novos, equipamentos novos, uniformes novos, impressoras com slogans enormes”, diz Ibrahim Dalalsha, diretor do Centro Horizonte para Estudos Políticos em Ramallah, na Cisjordânia. “O que Israel esteve bombardeando por dois anos?”
Não há dúvida de que Israel destruiu grande parte da ala militar e da liderança do Hamas, junto com quase toda a infraestrutura civil de Gaza, na guerra desencadeada pelo ataque terrorista do grupo, em 7 de outubro de 2023.
Mas quanto do Hamas —que também é um movimento político e social que administrava vários ramos do governo de Gaza— sobreviveu continua sendo uma questão crucial.
O que está claro é que os bombardeios de Israel forçaram o Hamas a ir para o subsolo, cedendo território a milícias rivais que Israel armou e treinou, repetindo uma estratégia que já fracassou em uma guerra anterior no Líbano.
Acima do solo, já está claro que muitos dos mais de 67 mil palestinos mortos pelo Exército israelense não eram combatentes do Hamas —quase metade eram mulheres e crianças, segundo autoridades locais de saúde. Autoridades israelenses, incluindo o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, afirmaram variadamente que 10 mil ou 20 mil dos mortos eram combatentes do Hamas, mas forneceram poucas evidências.
Os chefes de segurança de Israel acreditam que a capacidade do grupo de atacar Israel foi quase eliminada. Seu arsenal de foguetes foi dizimado, seus combatentes e comandantes altamente treinados foram mortos e cerca de 40% de seu sistema de túneis foi destruído, segundo estimativas da inteligência israelense.
Mas os palestinos não ficaram tão surpresos quanto os israelenses, ou o resto do mundo, que pelo menos algumas alas do Hamas pareçam intactas após dois anos de batalha.
“A percepção de que o Hamas emergiria dos escombros pode ser surpreendente para aqueles que pensam que Israel estava conduzindo uma campanha direcionada contra o Hamas, em vez de destruir muita infraestrutura civil”, diz Dalalsha.
Enquanto o Hamas buscava sobreviver à ofensiva de Israel, a anarquia tomou conta de Gaza, roubando parte da legitimidade da facção e até provocando pequenos protestos contra seu seu regime.
Agora que Israel está se retirando para linhas de controle sob o acordo do presidente dos EUA, Donald Trump —que prevê o desarmamento do Hamas—, o grupo e suas forças varreram a metade restante do território, disseram os residentes.
“Claro que eles não estão com capacidade total, mas precisam projetar uma imagem —o Hamas está saindo com toda força, e até que qualquer força internacional de estabilização seja implantada, eles estão no comando”, diz Mkhaimar Abusada, professor de ciência política da Universidade Al Azhar de Gaza, que agora vive no Cairo. “A polícia saiu dentro de poucas horas. Estão organizando o tráfego, implantando-se em todos os lugares. (…) É como se fosse normal.”
Uma das demonstrações mais potentes do controle do Hamas são os assassinatos públicos de vários homens encapuzados em mercados movimentados, com vídeos chocantes repercutindo instantaneamente nas redes sociais palestinas e israelenses.
O grupo terrorista afirmou que eram membros de clãs que haviam colaborado com Israel, chamando suas execuções de advertência para que outros entregassem suas armas e se rendessem. A facção ainda declarou guerra a pelo menos quatro grupos armados, dois dos quais acredita-se que tenham sido armados por Tel Aviv e que agora atuam atrás das linhas israelenses.
Em outros vídeos, homens foram baleados nas pernas enquanto multidões assistiam —uma lembrança da brutalidade das batalhas fratricidas de 2007, nas quais o Hamas tomou o controle de Gaza de seu rival palestino, o Fatah, inclusive jogando membros do grupo rival de edifícios ou atirando em seus joelhos.
“Para os moradores de Gaza, a mensagem é cristalina: ‘Não se metam conosco, nem ousem protestar'”, diz Abusada. “Dois milhões de palestinos agora sabem: não se revoltem contra o Hamas.”
Trump, questionado sobre a justiça vigilante aplicada nas ruas de Gaza, disse que “não o incomodava muito”. “Eram gangues muito, muito ruins”, afirmou. O republicano afirmou a jornalistas ainda que os combatentes “querem parar os problemas e têm sido abertos sobre isso, e nós demos aprovação por um período de tempo”.
Dalalsha, o analista baseado em Ramallah, diz que a demonstração de força também tem a intenção de enviar uma mensagem aos diplomatas que agora buscam converter este cessar-fogo em uma trégua permanente.
A segunda fase do plano de 20 pontos assinado na segunda (13) exige que o Hamas se desarme e ceda qualquer papel de governança em Gaza, além da desmilitarização do território e da entrada de uma força internacional de estabilização. Trump advertiu esta semana que “se eles não se desarmarem, nós os desarmaremos”.
Ao afirmar o controle, exibir suas armas abertamente e eliminar seus rivais, o Hamas está tentando se colocar em uma posição mais forte nessas negociações, diz ele.
“A questão principal não é com a governança —tem a ver com o controle de segurança”, afirma. Limitado pela quantidade de ajuda que Israel permitirá no território devastado, o Hamas “não pode fornecer serviços como costumava” fazer. “Mas eles definitivamente estão tentando manter o controle de segurança: a polícia, o Ministério do Interior”, diz. “Eles estão se agarrando a isso como uma questão de negociação no futuro.”
Mahmoud diz ainda que não pôde deixar de notar como o pessoal do Hamas que encontrou estava saudável. “Quando você os vê fisicamente, vê seus corpos —você tem uma indicação clara de que eles não estavam sofrendo como nós nesta guerra”, diz. “Eles estavam seguros —comida, bebida, emocionalmente.”