Quando Israel anunciou na última terça-feira (9) que havia lançado um ataque contra líderes seniores do Hamas no Qatar, uma agência de segurança estava notavelmente ausente das declarações oficiais: a Mossad.
Isso porque a agência de inteligência externa de Israel se recusou a executar um plano que havia elaborado nas últimas semanas para usar agentes em campo para assassinar líderes do Hamas, de acordo com dois israelenses familiarizados com o assunto que falaram sob condição de anonimato para discutir informações confidenciais.
O diretor da Mossad, David Barnea, se opôs à morte dos funcionários do Hamas no Qatar, em parte porque tal ação poderia romper o relacionamento que ele e sua agência haviam cultivado com os qataris, que estavam hospedando o Hamas e mediando as negociações de cessar-fogo entre o grupo militante e Israel, disseram essas pessoas.
As reservas da Mossad sobre uma operação terrestre acabaram influenciando a forma como o ataque foi realizado e, talvez, suas chances de sucesso. Elas refletiram uma oposição mais ampla dentro do establishment de segurança israelense ao ataque ordenado pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Embora as autoridades de segurança israelenses concordem amplamente que todos os líderes do Hamas, incluindo aqueles que vivem no exterior, devem ser eventualmente perseguidos e mortos, muitos questionaram o momento da operação, dado que os líderes do Hamas estavam reunidos no Qatar, um importante aliado dos EUA, e que esses líderes estavam ponderando uma proposta do presidente Donald Trump para libertar reféns israelenses mantidos em Gaza em troca de um cessar-fogo na guerra de Gaza.
Em vez de enviar agentes da Mossad, Israel recorreu na terça-feira a uma opção secundária: lançar 15 caças que dispararam 10 mísseis à distância. O Hamas afirmou que o ataque aéreo não conseguiu matar altos funcionários, incluindo seu líder interino Khalil al-Hayya. Em vez disso, disse o Hamas, o ataque matou vários parentes e assessores de sua delegação, bem como um oficial do Qatar. Autoridades israelenses até agora se recusaram a compartilhar publicamente avaliações do resultado, embora, logo após o ataque, parecesse que “Israel não conseguiu quem queria”, de acordo com uma pessoa familiarizada com os detalhes da operação que falou sob condição de anonimato porque não estava autorizada a falar com a mídia.
Não está claro se uma operação terrestre teria mais chances de sucesso, mas no ano passado, agentes da Mossad colocaram uma bomba no quarto do líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã, matando-o. “Desta vez, a Mossad não estava disposta a fazer isso em terra”, disse um dos israelenses familiarizados com o assunto, acrescentando que a agência vê o Qatar como um importante intermediário nas negociações com o Hamas.
Outro israelense familiarizado com a dissidência da agência questionou o momento escolhido por Netanyahu. “Podemos pegá-los em um, dois ou quatro anos a partir de agora, e a Mossad sabe como fazer isso”, disse o israelense, referindo-se à possibilidade de assassinar secretamente líderes do Hamas em qualquer lugar do mundo. “Por que fazer isso agora?”
Analistas dizem que Netanyahu, que vem se inclinando para uma invasão terrestre total da cidade de Gaza, pode ter perdido a paciência com as negociações de cessar-fogo.
“Barnea era conhecido como alguém que achava que a mediação do Qatar tinha valor, e você não queima os mediadores do Qatar ou o canal de mediação”, disse David Makovsky, pesquisador sênior do Washington Institute. Mas Netanyahu “pode ter decidido que entrará na cidade de Gaza, acreditando que a última proposta de negociação de Trump sobre a libertação dos reféns não estava obtendo nenhuma resposta do Hamas”, acrescentou Makovsky. “Se for esse o caso, Netanyahu pode ter visto a via de negociação como uma restrição inútil para agir no terreno.”
A Mossad não respondeu a um pedido de comentário. O gabinete do primeiro-ministro, que supervisiona a Mossad, também não respondeu aos pedidos.
Além de Barnea, o chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel, tenente-general Eyal Zamir, que instou Netanyahu a aceitar um acordo de cessar-fogo, também se opôs ao momento do ataque por temer que isso prejudicasse as negociações, enquanto o ministro de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, e o ministro da Defesa, Israel Katz, concordaram com a decisão de Netanyahu de prosseguir, disse um dos israelenses familiarizados com o assunto. Nitzan Alon, oficial sênior das Forças de Defesa de Israel responsável pelas negociações com os sequestradores, não foi convidado para uma reunião na segunda-feira para discutir a operação em Doha porque os líderes políticos sênior presumiram que ele se oporia a um ataque que poderia colocar em risco a vida dos reféns.
Autoridades israelenses atuais e antigas, incluindo Netanyahu, disseram que foram levadas a lançar o ataque aéreo ao Qatar na terça-feira porque tiveram uma rara oportunidade em que os principais líderes do grupo militante por trás dos ataques de 7 de outubro de 2023 a Israel estariam em um só lugar. Eles também foram forçados a responder, segundo afirmam, a um ataque de homens armados palestinos na segunda-feira que matou seis civis israelenses em Jerusalém, reivindicado pelo Hamas, e a uma emboscada em Gaza que matou quatro soldados israelenses no mesmo dia.
Algumas autoridades israelenses afirmam ter calculado que Israel restauraria as relações com o Qatar com o tempo, assim como Israel superou a indignação internacional sofrida durante as décadas de 1970 e 1980, depois que a primeira-ministra Golda Meir ordenou assassinatos secretos em países europeus e do Oriente Médio contra palestinos que sequestraram e assassinaram 11 atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique em 1972.
Em um funeral em janeiro, Barnea citou a história de Munique e disse que a Mossad estava “comprometida em acertar as contas com os assassinos que invadiram a Faixa de Gaza” em outubro de 2023 e com aqueles que planejaram os ataques.
Por enquanto, Israel enfrenta uma tempestade diplomática, com o Qatar condenando publicamente o ataque aéreo como “terrorismo de Estado” e uma traição ao processo de mediação.
No fim de semana passado, autoridades americanas apresentaram —e Trump divulgou publicamente— uma nova proposta dos EUA que exigia a libertação dos 48 reféns israelenses restantes, vivos e mortos, em troca de Trump supervisionar diretamente as negociações para um acordo permanente da guerra e o desarmamento do Hamas. Os mediadores consideraram que a oferta tinha mais “tração” entre as autoridades do Hamas, mas Israel atacou logo em seguida, na tarde de terça-feira, horário local, de acordo com uma pessoa informada sobre as negociações que falou sob condição de anonimato para discutir a delicada questão diplomática.
Embora ainda não esteja claro se ou quando as negociações de cessar-fogo poderão ser retomadas, o primeiro-ministro do Qatar, Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, disse ao Conselho de Segurança das Nações Unidas na quinta-feira que “continuaremos nosso papel diplomático sem hesitação para impedir o derramamento de sangue. Não podemos sucumbir aos extremistas”, disse ele, em referência ao governo israelense.
Netanyahu, por sua vez, acusou o Qatar de conceder refúgio ao Hamas e rebateu os países que criticaram o ataque. “Eu digo ao Qatar e a todas as nações que abrigam terroristas: ou vocês os expulsam ou os levam à justiça”, disse ele em um discurso na quarta-feira. “Porque, se não o fizerem, nós o faremos.”
Analistas políticos e observadores dizem que a beligerância de Netanyahu em relação ao Qatar esconde uma história complicada: embora o país do Golfo Pérsico tenha sido frequentemente criticado por algumas autoridades israelenses por sua proximidade com o Hamas, o Qatar acolheu líderes do Hamas por décadas a pedido de Israel e de sucessivos governos dos Estados Unidos e foi solicitado a mediar conflitos anteriores entre Israel e o Hamas, a partir de 2014.
Em 2018, Netanyahu e o Qatar concordaram em começar a enviar dinheiro qatari para Gaza como parte da estratégia do líder israelense para manter a estabilidade econômica no enclave governado pelo Hamas. Em troca, a Mossad, que lida com as relações com países como o Qatar, com os quais Israel não mantém relações diplomáticas formais, abriu um escritório na capital qatari, Doha, sob o comando do ex-diretor da agência Yossi Cohen, disse Jonathan Schanzer, diretor executivo da Fundação para a Defesa das Democracias, um think tank de Washington que apoia Israel e critica o Qatar.
Após os ataques do Hamas em 7 de outubro, assessores seniores de Netanyahu, incluindo o conselheiro de segurança nacional Tzachi Hanegbi, elogiaram publicamente o Qatar como um ator “essencial” no processo de mediação com o Hamas, e Netanyahu enviou Barnea e Cohen a Doha para iniciar negociações indiretas com o grupo militante para libertar reféns israelenses. Barnea viajou para Doha recentemente, em 14 de agosto, de acordo com a mídia israelense, e ainda hoje a agência acredita que o Qatar continua sendo um “ator viável” em relação ao Hamas, disse um dos israelenses familiarizados com o assunto.
Nimrod Novik, ex-funcionário israelense e analista do Israel Policy Forum, com sede em Nova York, disse que Netanyahu pode ter sido motivado a atacar o Qatar para sabotar uma proposta do governo Trump de que ele não gostava ou para enviar uma mensagem de advertência aos países do Golfo Pérsico que buscam promover a criação de um Estado palestino.
Outra consideração de Netanyahu pode ter sido se distanciar de um país com o qual seus críticos internos dizem que ele é muito próximo, disse Novik. No início deste ano, a relação de Netanyahu com o Qatar voltou a ser alvo de controvérsia em Israel depois que as autoridades israelenses começaram a investigar afirmações de que vários assessores do primeiro-ministro estavam na folha de pagamento do Qatar.
“A mesma pessoa que pediu ao Qatar para hospedar o Hamas, financiar o Hamas e mediar com o Hamas de repente se tornou hostil ao mesmo regime”, disse Novik. “Se você quer transmitir ‘não compartilho a mesma lealdade ao Qatar’ que [meus ex-assessores], então nada pode garantir esse objetivo mais do que um ataque militar ao Qatar.”