A escalada do conflito entre Israel e Irã nos últimos dias voltou a chamar a atenção para o programa nuclear israelense.
O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, justificou os ataques como uma ação para impedir que Teerã construa armas nucleares. “Se não for impedido, o Irã poderá produzir uma arma nuclear em muito pouco tempo.”.
O Irã nega que esteja buscando desenvolver armas nucleares. Segundo as autoridades iranianas, seu programa de enriquecimento de urânio —visto com desconfiança e preocupação por Israel, Estados Unidos e outros países— tem fins pacíficos, como o uso em energia, medicina ou agricultura.
O governo israelense, por sua vez, adota historicamente uma política de não confirmar e nem negar que tenha armas nucleares.
“Israel nunca assumiu uma posição oficial”, diz à BBC News Brasil o diretor sênior de políticas do Centro para o Controle de Armas e Não Proliferação, John Erath.
“Eles sempre se apoiaram na ambiguidade: nunca declararam ter capacidade de armas nucleares, mas também nunca declararam que não a possuíam”, afirma Erath, cuja organização reúne análises e pesquisas sobre controle de armas e não proliferação.
No entanto, Israel é amplamente considerado um dos nove países do mundo que têm armas nucleares atualmente —ao lado de EUA, Rússia, China, França, Reino Unido, Paquistão, Índia e Coreia do Norte.
“Estima-se que Israel possua cerca de 90 armas nucleares”, diz a Campanha Internacional para a Abolição de Armas Nucleares (Ican, na sigla em inglês), coalizão global com sede na Suíça, que foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz em 2017.
Esse cálculo é semelhante ao de várias outras organizações, incluindo a FAS (Federação de Cientistas Americanos), fundada em 1945 e que tem o objetivo declarado de “minimizar os riscos de ameaças globais significativas, decorrentes de armas nucleares, agentes biológicos e químicos e mudanças climáticas”.
Além disso, estima-se que Israel tenha estoque de material físsil (que pode passar por fissão nuclear) suficiente para cerca de 200 armas. No entanto, o sigilo torna difícil traçar um retrato mais preciso do programa nuclear israelense.
“Como Israel se recusa a confirmar ou negar a existência dessas armas, pouco se sabe sobre seu arsenal, mas especialistas acreditam que pode lançar armas nucleares por meio de mísseis, submarinos e aeronaves”, diz a Ican.
Na origem, ‘lembrança do Holocausto’
O número estimado de 90 armas nucleares em Israel é o segundo menor entre os nove países citados, depois da Coreia do Norte.
Segundo estimativas da FAS, esses nove países têm um total de cerca de 12.300 ogivas nucleares, quase 90% das quais pertencentes aos EUA ou à Rússia.
“O número exato de armas nucleares em posse de cada país é um segredo nacional guardado a sete chaves, portanto, as estimativas contêm uma incerteza significativa”, escreveram membros do Projeto de Informação Nuclear da FAS, em comentário sobre o status global de armas nucleares.
“Contudo, apesar dessas limitações, informações publicamente disponíveis, análise cuidadosa de registros históricos e vazamentos ocasionais tornam possível fazer as melhores estimativas sobre o tamanho e a composição dos estoques.”
Apesar de o programa israelense estar envolto em segredo, investigações históricas e uma série de documentos vazados ou liberados ao longo das décadas dão uma ideia de seu desenvolvimento.
Acredita-se que o programa tenha suas origens na década de 1950, e que a primeira arma nuclear operacional tenha sido construída na década de 1960.
“[Os líderes israelenses] viam o projeto nuclear como um compromisso para assegurar o futuro do país — uma promessa de ‘nunca mais’, forjada pela lembrança do Holocausto“, escreveram em fevereiro, na revista Foreign Policy, dois especialistas no programa nuclear israelense, Avner Cohen e William Burr.
Cohen é autor de vários livros sobre o assunto e professor do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais, na Califórnia.
Burr é diretor do Projeto de Documentação Nuclear no Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington.
“Audácia, artimanhas e dissimulação foram elementos cruciais na execução incansável do percurso nuclear de Israel”, disseram os autores, ao comentar a divulgação de novos documentos históricos liberados e o fato de que os EUA inicialmente não tinham conhecimento sobre a extensão do projeto.
Nos últimos anos, declarações de algumas autoridades israelenses também foram interpretadas como indícios de que o país tem armas nucleares.
Em 2023, em meio ao conflito na Faixa de Gaza, o ministro do Patrimônio, Amichai Eliyahu, sugeriu em entrevista à imprensa local lançar uma bomba atômica no território palestino.
Países fora do Tratado de Não Proliferação
As estimativas sobre os estoques de armas nucleares no mundo indicam uma redução significativa desde o período da Guerra Fria (1947-1991), quando os arsenais chegaram a cerca de 70 mil ogivas, segundo a Ican.
No entanto, a velocidade das reduções tem diminuído, e a expectativa da Ican, da FAS e de outras organizações é a de que os arsenais devem aumentar ao longo da próxima década.
Acredita-se que, enquanto alguns países estão reduzindo seus números, outros estão aumentando.
O governo israelense é um dos poucos que não assinaram o TNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares), acordo internacional que entrou em vigor em 1970 e tem adesão de 190 países.
Os signatários se comprometem em prevenir a proliferação dessas armas e promover o uso de energia nuclear para fins pacíficos.
Segundo a Associação de Controle de Armas, organização com sede nos EUA, “o TNP tem a mais ampla adesão de qualquer acordo de controle de armas, com apenas Sudão do Sul, Índia, Israel e Paquistão permanecendo fora do tratado”.
Além desses quatro países, que nunca assinaram o acordo, a Coreia do Norte, que era signatária, retirou-se formalmente em 2003.
O TNP classifica os países em duas categorias: os Estados com armas nucleares, que incluem EUA, Rússia, China, França e Reino Unido, e os que não possuem essas armas.
Quando o tratado foi negociado, os cinco já eram potências nucleares, e o objetivo era impedir que esse rol se expandisse.
O TNP considera Estados com armas nucleares apenas aqueles que “fabricaram e detonaram uma arma nuclear ou outro dispositivo nuclear explosivo antes de 1º de janeiro de 1967”.
Assim, caso Israel, Índia ou Paquistão decidissem aderir, precisariam fazê-lo como “Estados não possuidores de armas nucleares”.
Com isso, teriam de desmantelar suas armas nucleares e colocar seus materiais nucleares sob salvaguardas internacionais, como fez a África do Sul ao aderir ao TNP, em 1991.
Documentos da década de 1960 compilados pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington indicam que, inicialmente, os EUA esperavam que Israel fosse aderir ao TNP. Mas o governo israelense decidiu não assinar o tratado.
“No início, Israel via seu programa nuclear como uma apólice de seguro que protegeria a sobrevivência da nação em circunstâncias extremas”, diz à BBC News Brasil o especialista em proliferação nuclear Nicholas Miller, professor da Dartmouth College, universidade no Estado de New Hampshire.
“A adesão ao TNP removeria a dissuasão que os líderes israelenses acreditam que suas capacidades nucleares proporcionam”, destaca.
“Agora que Israel tem superioridade em forças convencionais sobre todos os seus rivais, os líderes israelenses provavelmente veem seu programa nuclear como uma salvaguarda contra riscos futuros —por exemplo, a possibilidade de um de seus rivais adquirir armas nucleares”, observa Miller.
Erath, do Centro para o Controle de Armas e Não Proliferação, lembra que Israel está “cercado por países que lhe são hostis”.
“Portanto, Israel sente que as armas nucleares são essenciais como uma garantia de sua contínua existência”, afirma Erath.
Desconfiança na região
Em um relatório no ano passado, a Ican ressaltou que “os EUA adotaram uma política de não pressionar Israel a aderir ao TNP” —uma visão compartilhada por várias outras organizações.
“Eles não sofreram muita pressão dos EUA, em parte devido à forte relação entre Israel e Washington, e em parte porque Israel manteve suas capacidades nucleares ambíguas e não desafiou abertamente o regime de não proliferação”, afirma Miller.
O professor ressalta, porém, que rivais de Israel há muito defendem uma zona livre de armas nucleares no Oriente Médio, como forma de pressionar diplomaticamente o governo israelense sobre seu programa nuclear.
A postura de Israel e dos EUA atrai críticas de que poderia comprometer esforços de não proliferação e desestabilizar a região.
Também há críticas pela falta de transparência e pelo que é percebido por alguns como hipocrisia —já que Israel tem um histórico de esforços diplomáticos e militares para impedir que outros países da região adquiram armas nucleares.
“A posse de armas nucleares por Israel, e a aceitação pública tácita dos EUA e de muitos governos ocidentais, representam um claro risco de proliferação e podem ter encorajado outros governos na região a considerar o desenvolvimento nuclear no passado”, diz o relatório da Ican.
Para Miller, “não há dúvida de que o programa nuclear de Israel estimulou outros países na região a iniciar seus próprios programas de armas nucleares, o que tem gerado tensão no regime de não proliferação”.
“Em épocas diferentes, Iraque, Irã, Líbia e Síria buscaram armas nucleares, e cada um deles foi motivado, ao menos em parte, pelo desejo de igualar a capacidade nuclear de Israel”, afirma o professor.
Miller lembra também que, dentro de Israel, o sigilo em torno do programa “é criticado por inibir o debate democrático sobre a política nuclear” do país.
Esta reportagem foi publicada originalmente aqui.