As ações do presidente Donald Trump contra o Brasil vão deixar “sequelas permanentes” na relação bilateral, opina Jana Nelson, a brasileira-americana a chegar mais longe na hierarquia do governo dos EUA. Para ela, houve uma quebra de confiança de impactos duradouros por causa das sanções e tarifas impostas por Trump e as ameaças contra o governo brasileiro e o Supremo Tribunal Federal. “Daqui a 20 anos, vão fazer referência ao que está acontecendo hoje, vão dizer: é por isso que não se pode acreditar no que diz o governo americano.”
Nelson foi responsável pelas relações com o Brasil no Departamento de Estado durante cinco anos e chegou a subsecretária de Defesa, cargo que deixou em janeiro, com a posse de Trump. Filha de americanos, nascida e criada em Manaus, mudou-se para os EUA após se graduar em relações internacionais na Universidade de Brasília.
Depois de um mestrado na Universidade Georgetown, passou no exame de admissão do governo americano e entrou no Departamento de Estado. Para ela, as sanções e tarifas impostas por Trump alimentam o antiamericanismo no Brasil, que já era latente. E levam ao mesmo tipo de desconfiança que foi gerada pelo apoio ao golpe de 1964.
Por ser uma brasileira-americana que trabalhou tantos anos no governo dos EUA, como a sra. se sente diante dessa crise bilateral?
Primeiro, queria dizer que o que está acontecendo agora é inaceitável. O uso de uma lei tarifária de emergência para fins coercitivos, uso de sanções para fins de vingança, não é algo normal. Dito isso, as consequências são reais e vão ser de longo prazo. Dediquei os últimos 20 anos da minha carreira a essa relação bilateral, a traduzir um país para o outro. São países muito mais similares do que eles creem. São grandes, com economias domésticas imensas, com ambições internacionais, que olham muito para o próprio umbigo.
Historicamente, sempre houve muita desconfiança entre os dois lados. Eu acreditava que podíamos melhorar isso. É um tema muito maior que eu, mas, para mim, é emocionalmente difícil também, porque o que está acontecendo deixará sequelas permanentes. Daqui a 20 anos, vão fazer referência ao que está acontecendo hoje, vão dizer: é por isso que não se pode acreditar no que diz o governo americano.
Trump pegou o Brasil para Cristo porque se vê em Bolsonaro. Ele quer ajudar um aliado que, na percepção dele, passou por exatamente a mesma coisa que ele passou. É uma oportunidade para Trump vingar a sua própria história
Que tipo de impactos podemos esperar?
Vários pressupostos que a gente tinha de como os Estados Unidos se portam, várias suposições que nós, americanos, tínhamos sobre nosso país e nosso governo estão sendo rompidos. O fim da Usaid (agência de ajuda externa dos EUA) é um grande exemplo disso. Sempre acreditamos em livre comércio, em globalização, e usar sanções e tarifas do jeito atual muda tudo isso. A gente sempre buscava relações de ganho mútuo, não apenas transicionais, competitivas.
Mesmo que mude o governo e tenhamos um presidente mais amigável internacionalmente, as coisas não voltarão a ser como eram. Os outros países não vão acreditar em nós, não vão querer trabalhar conosco. Já há diversificação econômica e de política externa no Brasil e em vários países, porque existe uma suspeita agora incrustada no sistema de que os EUA não são confiáveis.
No caso do Brasil, a sra. considera que isso alimenta um antiamericanismo?
Com certeza, alimenta um antiamericanismo que sempre foi meio latente. E vai alimentar por muitos anos, vai ser um momento histórico, como foi a ditadura militar [com o apoio americano ao golpe de 1964]. Vai virar o mesmo tipo de exemplo a ser usado no futuro. É uma pena.
Autoridades brasileiras não conseguem nem ser recebidas por integrantes do governo americano para discutir as tarifas. O que o Brasil poderia fazer em termos de negociação? Alguns analistas afirmam que se trata, também, de uma reação de Trump ao Brics e à ideia de desdolarização.
Trump pegou o Brasil para Cristo porque se vê em Bolsonaro. Ele quer ajudar um aliado que, na percepção dele, passou por exatamente a mesma coisa que ele passou. É uma oportunidade para Trump vingar a sua própria história. Agora, claro, há outros fatores, e analistas citarão várias outras razões. Mas, no fim das contas, Trump não está prestando tanta atenção na questão do Brics, nas nuances dos alinhamentos geopolíticos. Para ele, o Brasil é um caso pessoal. Acho que o Itamaraty escolheu um bom caminho, que é levar para a Organização Mundial do Comércio, um lugar legítimo, embora pouco eficiente.
Houve a visita dos senadores recentemente, tentando criar caminhos de conversa. Há um esforço de pelo menos dizer: “estamos interessados em conversar com vocês”. Mas, embora a situação econômica requeira buscar o apaziguamento, isso é muito difícil do lado político. Não há muita razão para Trump diminuir a pressão que ele próprio criou. Não vejo ganho político em tentar, neste momento, uma reunião ou telefonema com Trump. Os líderes viram o que aconteceu com o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, e o da África do Sul, Cyril Ramaphosa [ambos foram constrangidos em reuniões na Casa Branca]. O presidente Lula não quer se colocar nessa situação, é completamente compreensível.
Em seu primeiro mandato, Trump impôs tarifas e depois cotas sobre a exportação de alumínio e aço, incluindo do Brasil. Após alguns meses, as cotas foram flexibilizadas por pressão das siderúrgicas nos EUA que compram aço brasileiro. A sra. vê espaço para algo desse tipo?
Sim, a pressão de empresas privadas seria um instrumento viável de negociação. Outro instrumento que poderá ser útil para o Brasil é o movimento nos Estados Unidos de tentar limitar o uso da International Emergency Economic Powers Act of 1977 (Ieepa) como justificativa para o tarifaço. Há um projeto de lei que foi introduzido no Senado usando o caso brasileiro como principal exemplo. Se eles forem bem-sucedidos no Congresso, que atualmente não é controlado pelos democratas, isso resolverá o problema do Brasil e de muitos outros países afetados pela Ieepa.
Considerando que os republicanos detêm a maioria no Senado e na Câmara, é realista contar com a aprovação dessa lei?
O uso da Ieepa vai levar a aumento da inflação nos EUA em algum momento. Há muitos legisladores republicanos que não são a favor dessa política econômica. Então não hoje, mas talvez em seis meses, quando os efeitos dessa política tarifária forem muito mais presentes no dia a dia do cidadão americano, congressistas republicanos podem decidir apoiar limites para a Ieepa.
Qual o reflexo da crise com os EUA na relação do Brasil com a China?
É natural qualquer país, não só o Brasil, buscar a diversificação de parceiros econômicos, políticos e diplomáticos depois de os EUA optarem por essa “weaponization of interdependence” [transformar a interdependência em arma]. A consequência natural de tudo isso é que, depois de anos buscando melhoria econômica e de qualidade de vida por meio da interdependência econômica, agora os países se voltem para a autossuficiência. Voltamos a uma era econômica muito mais parecida com os anos 70, com a formação de campeões nacionais, de nacionalização de certas indústrias. E, ao mesmo tempo, reduzir a dependência dos EUA.
É preciso, porém, ter um pouco de cuidado para não sair de uma situação complicada para entrar em outra. Interdependência econômica dos Estados Unidos pode ser perigosa, mas a interdependência econômica da China também é. É importante não deixar que o pêndulo vá muito para o lado da China, porque vai gerar dependência econômica de um país que tem menos afinidade cultural e menos afinidade de valores e tem usado dependências econômicas para fins políticos.
Jana Nelson, 41
Formada em relações internacionais pela Universidade de Brasília e tem mestrado pela Universidade Georgetown. Ela foi subsecretária de Defesa dos EUA para o Hemisfério Ocidental (deixou o cargo em janeiro deste ano), assessora sênior da missão dos EUA na ONU, e integrante da equipe responsável pelo Brasil no Departamento de Estado (2010-2015). Atualmente, é chefe para América Latina do Instituto Tony Blair – mas, nesta entrevista, fala em caráter pessoal.