Fronteiras bem definidas, bandeiras e línguas nacionais, blocos militares e econômicos. Parece que o mundo é assim desde sempre e que a geopolítica é uma ordem inevitável, quase biológica. E que um artigo chamado “Menos Trump, mais mulheres indígenas” peca por não aceitar o determinismo de quem deve exercer poder, como se a natureza, ou uma força maior, tivesse assim definido. Sinto frustrar leitores, mas questionar a ordem mundial não é pecado. Pensar também não. E fora da tradição judaico-cristã, o pecado nem existe.
A forma como entendemos a política internacional hoje é resultado de invenções, disputas e acordos instáveis ao longo da história. Antes da consolidação dos Estados modernos, a Europa era um emaranhado de feudos, reinos, impérios e alianças transitórias. Lealdades locais, vínculos religiosos e relações de vassalagem coexistiam, como tão bem mostrou a historiadora Silvia Federici, com o coletivismo comunitário que permitia maior equilíbrio de poder entre mulheres e homens.
A unificação em torno da ideia de Estado-nação só ganhou corpo depois de 1648. E o mapa europeu como conhecemos, com suas fronteiras nacionais e sua ideia de Estado soberano, é fruto de um arranjo histórico recente.
Nas Américas, a diversidade de formas políticas e culturais antes da colonização era imensa. Impérios como o Asteca e o Inca administravam milhões de pessoas com redes de estradas, agricultura sofisticada e centros urbanos monumentais. Os maias desenvolveram cidades-Estados interligadas.
No sul, os mapuches resistiram a incas e espanhóis por séculos, e seguem resistindo, assim como os guaranis e tupis formam redes comunitárias pelo interior e pelo litoral. Povos amazônicos, como ticunas, yanomamis e ashaninkas, manejam a floresta com técnicas complexas que criaram a maior floresta tropical do mundo.
No continente africano, muito antes da partilha colonial do século 19, existiam impérios e reinos altamente sofisticados. O Mali articulava comércio e saber. O Gana e o Songhai controlavam rotas de ouro e sal no Sahel. O Reino do Benim se destacava pela arte em bronze e marfim, enquanto Oió, entre os iorubás, organizava uma complexa estrutura militar.
O Kongo mantinha relações diplomáticas com a Europa já no século 15. No chifre africano, Axum, um dos grandes impérios da Antiguidade, adotou cedo o cristianismo e se tornou base da duradoura Etiópia, única monarquia africana que resistiu ao colonialismo. Repito: a Etiópia nunca foi colonizada.
Os Estados que hoje conhecemos são resultados de fronteiras arbitrárias, não de uma ordem eterna. O fato de os Estados Unidos se colocarem como centro do mundo desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial não significa que esse arranjo seja inevitável. A Guerra Fria mostrou como o poder global pode se dividir em blocos. E como os blocos também acabam. Hoje, vemos disputas multilaterais e reposicionamento constantes.
Mas enquanto guerras e eleições acontecem, apertos de mãos em salas fechadas e golpes escancarados são dados, mulheres amamentam seus filhos, roupas são lavadas, comida é plantada, colhida e preparada. Vizinhas se ajudam e desconhecidos se protegem, em solidariedade, apesar da grande ordem mundial. Governantes e sistemas passam, a vida segue, passarinho.
No 25 de Novembro, mulheres negras estarão em marcha, em Brasília, contra o racismo e o machismo, pelo Bem Viver. Porque o mundo está em disputa. Como sempre esteve.