Foi depois de quase morrer envenenado que o opositor russo Alexei Navalni (1976-2024), o maior inimigo do autocrata Vladimir Putin, decidiu escrever suas memórias.
“Morrer, na verdade, não doeu”, relembra Navalni, ao descrever o momento em que caiu no chão em um avião e entrou em colapso por causa de uma substância neurotóxica usada por agentes da inteligência do Kremlin.
Seu livro “Patriota”, lançado pela editora Rocco no Brasil, começa com essa quase morte e se encerra com sua morte —em um epílogo póstumo escrito por sua mulher, Yulia, e seus colaboradores. A vida intensa de Navalni transcorre numa mistura do humor sardônico do dissidente com cenas pungentes. E não se pode negar que se trata de um documento histórico.
Navalni conta a infância soviética em uma vila militar na Rússia, em uma família que enfrentava as filas diárias para o leite racionado e cobria o telefone com uma almofada quando criticava o regime, para evitar escutas da KGB. Era a época em que Navalni e seus amigos sonhavam com chicletes e calças jeans contrabandeados do Ocidente.
Depois vêm a dissolução da União Soviética, a ascensão de Boris Iéltsin e da corrupção. Na faculdade de direito na Universidade Russa da Amizade entre os Povos, os alunos, inclusive Navalni, subornavam professores para passar de ano.
Desde as primeiras incursões na política, o opositor se mostrava um provocador. Ele chega à era de Putin investigando incansavelmente o Kremlin e os oligarcas, e veiculando suas denúncias em vídeos em redes sociais que geravam milhões de visualizações. Foi preso incontáveis vezes.
Apesar de todos os reveses, que culminaram até em meses de solitária a uma temperatura de -35 ºC, o líder da oposição russa consegue imprimir humor a suas memórias.
“O autor do livro foi assassinado por um presidente execrável: o que mais poderia desejar o departamento de marketing?” brinca Navalni, ao contemplar a possibilidade de enfrentar mais uma tentativa de assassinato —e não sobreviver.
“O frio não desceu a menos de -32. Mesmo nessa temperatura dá para caminhar mais de meia hora, mas só se você tiver certeza de que nascerão um nariz, dedo e orelhas novos”, descreve, sobre o “clima ameno” na prisão do Ártico onde estava.
Muitos perguntavam por que Navalni resolveu voltar à Rússia após meses de reabilitação na Alemanha. Ele ensaia respostas no livro.
“Desde o início, eu sabia que seria encarcerado pelo resto da vida, fosse o resto da minha vida ou o fim da vida desse governo” escreve ele, que foi detido logo após pousar em Moscou, em 2021.
Navalni teve inúmeras condenações em pseudo-julgamentos , culpado por crimes que iam desde “ofender um veterano da Segunda Guerra Mundial” até “extremismo”, que lhe rendeu a pena de 19 anos. “Não sou nenhum louco, nem irresponsável ou destemido. Apenas, lá no fundo, sei que tenho que fazer isso, que é a minha missão na vida.”
Isso não o impede de lamentar que nunca mais vai ver seus filhos ou sua mulher, que vai perder todos os aniversários, casamentos e momentos importantes da vida deles. Ele tampouco deixa de temer pela integridade física de sua família —diz ficar apavorado ao pensar que “podem aplicar [o veneno] Novichok na maçaneta da minha porta e meu filho ou minha filha podem encostar nela”.
As condições nas prisões por onde passou eram atrozes, como mostra a segunda parte do livro, em grande parte baseada em trechos de seu diário e postagens em redes sociais.
Chegou a ser mandado para a cela de punição porque “o botão de cima do seu uniforme estava desabotoado”. Não podia receber telefonemas nem visitas; papel e caneta, apenas uma hora e meia por dia.
Com excruciantes dores nas costas que causavam insensibilidade das pernas, ele tentou várias vezes obter atendimento médico, sem sucesso. Entrou em greve de fome para protestar.
Ainda assim, mantinha-se otimista em sua luta contra Putin. “Este regime sinistro, baseado em mentiras e corrupção, está com os dias contados. O futuro é nosso.”
Navalni morreu aos 47 anos em 16 de fevereiro de 2024, enquanto cumpria pena em uma penitenciária no círculo ártico. Segundo o Kremlin, sua morte decorreu de uma serie de doenças, e não houve crime. O livro foi publicado postumamente. Putin está no poder na Rússia há 25 anos.