Quando a pandemia de Covid-19 chegou, no início de 2020, tivemos poucos dias para que os nossos cérebros se adaptassem à sua natureza exponencial. Era difícil entender que um ou dois infetados num dia se transformasse rapidamente em centenas, milhares, milhões.
Mais difícil ainda admitir que isso teria de levar a alterações brutais em nossos cotidianos, economias, sociedades. Mesmo quando a escala avassaladora do problema já estava em cima de nós, era fácil cair na tentação de que afinal estávamos perante uma gripezinha. Somos animais de hábitos, e uma gripezinha a gente sabia o que era.
Estamos num momento análogo na política internacional. A invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia de Vladimir Putin, em fevereiro de 2022, e a chegada ao poder de Donald Trump para um segundo mandato, em janeiro de 2025, são eventos que transcendem a normal escala das mudanças de ciclos políticos.
Em vez disso, eles inauguram uma nova era histórica e ameaçam desfazer o sistema internacional construído após a Segunda Guerra Mundial —tudo aquilo a que chegam as nossas memórias pessoais. O que estamos prestes a viver nenhum de nós conheceu antes; no máximo podemos procurar termos de comparação nos livros de história.
Mas é mais fácil ler sobre história nos livros do que compreendê-la quando ela muda à nossa frente. Por isso há quem procure minimizar a escala da mudança, justificar Putin, desdenhar de Trump. Mas a obrigação de qualquer intelectual minimamente realista é dizer em primeiro lugar o óbvio, e o óbvio aqui é: não, Putin e Trump não são uma gripezinha.
Isso é particularmente evidente aqui na Europa, confrontados que estamos com uma Rússia agressiva que não reconhece as fronteiras dos países seus vizinhos a leste, e agora com um Trump na Casa Branca que fala obsessivamente sobre anexar território dinamarquês no Atlântico Norte.
Não passará despercebido a qualquer português como eu que, tal como a Dinamarca tem no Atlântico Norte a Groenlândia, também Portugal tem os Açores, em ambos os casos com bases militares americanas já instaladas. Mas é tão difícil aceitar que essa possa ser agora a nossa realidade que a tentação é simplesmente fingir que a ameaça não existe.
Para ser levada a sério, a Europa tem de ser capaz de se unir e, para lá da União Europeia, ser capaz de construir uma Comunidade Europeia de Defesa que inclua o Reino Unido e a Noruega, pelo menos. Se os EUA saírem da Otan, tomar conta dessa organização com o Canadá. A escolha é clara: conquistar autonomia estratégica ou viver sob as ameaças e o assédio dos autoritários.
Globalmente, o desafio maior é o das tarifas punitivas de Trump. Mais do que cada país fazer as contas às tarifas que lhe cabem em sorte, é essencial entender que é o próprio princípio do comércio internacional que está em jogo. Mais uma vez, os países que entendem e respeitam as suas regras devem ser capazes de tomar conta do sistema sem os EUA, fazendo da estabilidade das tarifas um bem público global.
É uma tarefa gigantesca, para levar a cabo em pouco tempo. Mas para que serve a história, senão para estarmos à altura dela?