Em Madri, no caminho entre o Palácio de la Moncloa, residência oficial do chefe de governo, e o Parlamento espanhol, há um monumento incômodo. Trata-se do Arco da Vitória, construído pelo ditador Francisco Franco no lugar onde, em 1939, seu exército derrotou as forças republicanas, dando início a uma ditadura que durou 36 anos.
Nesta quinta-feira (20) completam-se 50 anos da morte do “generalíssimo”, e a Espanha se divide entre o que fazer com o Arco e os cerca de 6.000 pontos de alusão ou celebração do franquismo espalhados pelo país.
Pedro Sánchez, o primeiro-ministro da Espanha, decidiu associar a data ao projeto “50 años — España en Libertad”. O programa inclui exposições, debates e a destruição ou ressignificação de monumentos como o Arco que Sánchez avista diariamente. A permanência do franquismo em estátuas, placas de prédios públicos e nomes de ruas reflete a relação complexa dos espanhóis com seu passado ditatorial.
Franco era um homem de 1,63 metro de altura, voz aguda e bigode em forma de mosca. Na juventude, segundo um de seus principais biógrafos, o historiador britânico Paul Preston, era obcecado por assuntos militares, tímido com as mulheres e avesso à boêmia. Morreu aos 82 anos, em 1975, ano seguinte à Revolução dos Cravos —que, em 25 de abril de 1974, derrubara a ditadura salazarista do vizinho Portugal. O paralelo entre os dois países ibéricos ajuda a entender o caso espanhol.
Portugal tem dois museus de vulto alertando para os horrores da ditadura, um em Lisboa e outro, recém-inaugurado, na cidade litorânea de Peniche. Na Espanha não há nada semelhante. Na política portuguesa nem mesmo a ultradireita reivindica o legado do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970). No país vizinho, o projeto “España en Libertad” foi duramente criticado pelas siglas à direita do espectro político, num reflexo da intensa polarização no país.
A prefeita de Madri, Isabel Díaz Ayuso, acusa Sánchez de “dividir os espanhóis” ao evocar a memória do ditador. O premiê representa a centro-esquerda socialista, e Ayuso pertence ao Partido Popular (PP), de centro-direita.
“Na Espanha, os partidos à direita não gostam de condenar o passado ditatorial e preferiam não trazer o assunto à tona”, diz o cientista político Hugo Marcos Marne, da Universidade de Salamanca. “Uma parte importante do Partido Popular tem conexões emocionais com o franquismo e gostaria de deixar as coisas como estão, sem também fazer defesa da ditadura.”
Marne se refere ao fato de que na Espanha, ao contrário de Portugal, a transição da democracia para a ditadura foi pacífica e precedida por uma anistia. Muitos ex-integrantes do regime franquista se filiaram ao PP, que desde então se opõe ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). A terceira força política da Espanha é a ultradireita, representada pela sigla Vox.
“O Vox tampouco exalta explicitamente a ditadura, mas dá piscadelas a seus eleitores exaltando alguns valores caros ao franquismo, como a tradição, a identidade nacional e os avôs e avós que lutaram por isso no passado”, afirma.
“O que ocorreu aqui foi um apagamento do regime autoritário, como se ele não tivesse sido importante”, diz a cientista política espanhola Elena Martínez Barahona, também da Universidade de Salamanca.
“Morei em Portugal, e meus filhos tinham aula sobre Salazar e a ditadura na escola. Os livros didáticos espanhóis, ao contrário, narram em detalhes a Guerra Civil e pouco falam da ditadura que se seguiu a ela, passando sobre o período em velocidade supersônica.” Salamanca, sede da universidade mais antiga da Espanha, abriga um dos poucos arquivos de memória histórica do país.
Novas pesquisas vêm trazendo à tona, aos poucos, as mazelas do autoritarismo. Em uma obra de referência sobre a Espanha contemporânea, os historiadores Julián Casanova e Carlos Gil Andrés estimam em 50 mil os espanhóis mortos depois da Guerra Civil, alguns deles nos campos de concentração criados pela ditadura franquista. Os pesquisadores calculam que em 1943 havia cerca de 100 mil presos políticos no país.
“A história que se ensina nas escolas muitas vezes mostra o franquismo como um período de paz depois de uma Guerra Civil”, diz Elena Barahona. “Não se fala que foi uma guerra provocada pelas falanges franquistas, que destruíram uma República que tinha uma Constituição avançada para a época, inclusive com direitos para as mulheres.”
Os historiadores Casanova e Andrés estimam que, durante os primeiros tempos da ditadura franquista, cerca de 20 mil espanholas republicanas foram presas. Os filhos pequenos foram entregues a instituições religiosas.
A versão de uma Espanha pacificada e pacífica se assenta sobre o fato de que Franco manteve o país neutro durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945). Casanova e Andrés mostram um quadro mais matizado. O ditador espanhol chegou a ter um encontro com Adolf Hitler em 23 de outubro de 1940, na cidade francesa de Hendaye.
De acordo com os historiadores, Franco tinha pouco a oferecer —um Exército em frangalhos depois da Guerra Civil— e muito a pedir: ele queria que territórios franceses em Marrocos e na Argélia fossem entregues ao domínio espanhol. Além do descompasso entre os líderes, o medo de represálias dos aliados contribuiu para que os dois não estabelecessem uma aliança formal.
Mesmo assim, Franco enviou soldados para combater ao lado dos alemães na frente russa, em retribuição ao apoio que recebera da força aérea de Hitler durante a Guerra Civil espanhola. Com papel apenas lateral no conflito, usou o período da Segunda Guerra para instituir um sistema de delação de opositores que se tornaria a marca registrada de seu regime, marcado pela desconfiança e o terror.
Após a guerra, Franco dedicou-se a preparar Juan Carlos, herdeiro da monarquia espanhola, para assumir o trono depois de sua morte.
Em autobiografia recém-publicada na França, Juan Carlos, atualmente rei emérito, escreveu que “respeitava enormemente a inteligência e o sentido político” do ditador, com quem mantinha “relações pessoais e frequentes”. Registrou ainda que nunca deixou que criticassem Franco na sua frente.
O governo de Pedro Sánchez ficou de entregar até o fim deste mês uma lista de lugares de memória que serão destruídos ou ressignificados. O principal deles é o Valle de Cuelgamuros, antigo Valle de Los Caídos, monumento erguido nas imediações de Madrid em memória dos que lutaram ao lado de Franco, e que até recentemente abrigou os restos mortais do ditador.
Após um concurso público, decidiu-se construir no local o museu sobre ditadura que falta à Espanha, a um custo de € 30 milhões (R$ 184 milhões).
A inauguração está prevista para 2027, ano de eleições gerais. Ao que tudo indica, a Espanha continuará polarizada, e a memória histórica será um dos temas da campanha.




