Há apenas uma década, a era das guerras, complôs de golpes e intervenções militares dos Estados Unidos na América Latina parecia estar diminuindo quando o governo Obama declarou a morte da doutrina Monroe, que há muito afirmava a supremacia militar de Washington nas Américas.
Agora, essa pedra angular da política externa do país está voltando à vida com força total, ressuscitando temores sobre a interferência militar dos EUA na região após o presidente Donald Trump ordenar ao Pentágono que use força militar contra certos cartéis de drogas latino-americanos.
Líderes na região ainda estão tentando decifrar o que a ordem de Trump poderia significar. México e Venezuela, duas nações onde nasceram e operam cartéis designados como grupos terroristas por Washington, parecem especialmente vulneráveis.
Mas em grande parte da América Latina, qualquer sugestão para reviver tais ações militares também poderia desencadear um aumento do sentimento anti-americano. A notícia da ordem de Trump já intensificou uma desconfiança contra intervenções do exterior mesmo no Equador e em outros países assolados pela violência do narcotráfico.
“Sou um conservador de direita, então quero cidadãos armados e militares realmente atirando”, diz Patricio Endara, 46, um empresário em Quito. “Mas eu não concordaria com a presença de soldados estrangeiros no Equador.”
Esse ceticismo deriva das amargas memórias deixadas pelo longo histórico de intervenções militares dos EUA na região, seja por meio de ação direta ou indireta, como durante o longo conflito armado da Colômbia. “Essas são fórmulas que demonstraram, até a exaustão, seu fracasso”, afirma Iván Cepeda, senador colombiano, em entrevista.
Essas intervenções “causam danos imensos”, diz Fernando González Davidson, professor universitário guatemalteco, apontando como tais ações frequentemente buscavam mudanças de governo. “Os EUA deixam o poder nas mãos de uma classe corrupta e criminosa alinhada com seus próprios interesses.”
Um golpe apoiado pelos EUA em 1954 na Guatemala derrubou um líder democraticamente eleito devido a preocupações de que um projeto de reforma agrária ameaçava a United Fruit, uma poderosa corporação americana dona de grandes extensões de terra no país centro-americano.
Nas décadas que se seguiram, esse golpe guatemalteco tornou-se um grito de guerra em toda a região ao expor a política de Guerra Fria de Washington como uma ferramenta usada para proteger os interesses americanos acima dos princípios democráticos e da soberania nacional no continente.
A afirmação do presidente James Monroe, em 1823, de que Washington poderia usar seu poderio militar na América Latina tinha mais ameaça do que ação, dizem os historiadores. O discurso lançou as bases do que ficou conhecido como doutrina Monroe muito antes do envolvimento militar dos EUA na região se tornar tão controverso.
Mas na década de 1840, o presidente James Polk invocou a doutrina para justificar a guerra contra o México, que resultou na conquista de Washington de terras mexicanas que hoje compõem estados como Califórnia, Arizona, Colorado e Novo México.
Esse resultado humilhante, e outras intervenções militares dos EUA no México na década de 1910, moldaram profundamente a identidade política do país, fomentando um forte sentimento nacionalista que frequentemente se opõe aos vizinhos ao norte.
A presidente Claudia Sheinbaum recorreu a esse sentimento na sexta-feira (8), quando rejeitou o uso de forças militares dos EUA no país. Ela deixou claro que o México descarta qualquer tipo de invasão, palavra usada por ela.
Uma ação militar dos EUA dentro do México seria desastrosa para a cooperação bilateral em questões como migração e segurança, diz Arturo Santa-Cruz, especialista nas relações EUA-México da Universidade de Guadalajara.
A expansão territorial entrou em jogo novamente durante a Guerra Hispano-Americana em 1898, solidificando a emergência dos EUA como potência global quando tomou Porto Rico, Guam e as Filipinas da Espanha.
O presidente Theodore Roosevelt seguiu em 1903 enviando navios de guerra para apoiar uma revolta de separatistas na Colômbia. Esses separatistas formaram o que é hoje o Panamá e deram a Washington o controle sobre a zona do Canal do Panamá, que o país só recuperou completamente em 1999 —e hoje é alvo de pressão de Trump.
Roosevelt criou seu próprio corolário à doutrina Monroe no ano seguinte, alegando que os EUA deveriam exercer “poder de polícia” nas Américas quando encontrassem casos flagrantes do que ele chamou de irregularidades.
Essa mudança impulsionou as intervenções dos EUA, e a proteção da propriedade americana em qualquer parte do continente era frequentemente a justificativa para tal. Somente em Cuba, as forças dos EUA fizeram intervenções em três ocasiões de 1906 a 1922.
Durante a Guerra Fria, Washington encontrou novas formas de intervir. Isso incluiu o apoio a golpes que derrubaram líderes democraticamente eleitos na Guatemala, no Chile e no Brasil —resultando na ditadura militar (1964-1985).
As forças dos EUA também continuaram intervindo com tropas em locais como a República Dominicana e Granada, motivadas por preocupações com comunistas nesses países.
Tantas ações de intervenção tiveram o efeito de unificar grande parte da América Latina em torno da questão da soberania. Esse posicionamento ficou evidente quando países latino-americanos recentemente se uniram em oposição às ameaças de Trump de retomar o Canal do Panamá.
“Tem havido uma vontade férrea entre os latino-americanos para definir a soberania nacional e a não intervenção como alguns de seus valores fundamentais”, diz Alan McPherson, historiador da Universidade Temple na Filadélfia.
Mesmo quando a Guerra Fria estava chegando ao fim, em 1989, Washington mais uma vez atuou no Panamá para depor seu líder de fato, Manuel Noriega, que era procurado pelas autoridades americanas por acusações de tráfico de drogas.
Para os americanos, foi a “Operação Causa Justa”, disse Efraín Guerrero, um líder comunitário que oferece passeios a pé na Cidade do Panamá para manter viva a memória da invasão dos EUA. “Mas para nós, tornou-se ‘Proibido Esquecer’, porque temos que lembrar de todos aqueles que morreram.”
Essa intervenção poderia fornecer um modelo para uma ação semelhante em um país como a Venezuela. Os EUA dobraram uma recompensa (para US$ 50 milhões) por informações que levem à prisão do ditador Nicolás Maduro, a quem autoridades dos EUA acusam de ter ligações com gangues como o Tren de Aragua e o mexicano Cartel de Sinaloa.
Desde que a notícia da ordem de Trump foi tornada pública na última sexta-feira (8), alguns críticos do regime venezuelano pediram que os EUA fizessem exatamente isso, pedindo ao presidente americano que ordenasse às tropas que perseguissem Maduro, assim como eles visaram o presidente do Panamá em 1989.
“Vamos esperar que ele faça isso”, disse uma mulher venezuelana na cidade de Maracaibo, que pediu que seu nome não fosse divulgado por medo de Maduro. “Isso é o que estamos esperando, há anos: que Maduro saia ou que Trump o leve. Nós, venezuelanos, alegremente o entregaríamos.”
“Esta ação ou ameaça da gestão Trump”, afirma Christopher Sabatini, especialista em América Latina da Chatham House, com sede em Londres, “vai realmente tocar nesse nervo histórico e profundamente sensível” sobre as intervenções dos EUA na América Latina. No entanto, diz ele, ao longo da história também havia, frequentemente, “uma facção política particular que pressionava os EUA a se envolverem.”