A cidade de Aveiro, no norte de Portugal, é famosa pelos canais que lhe renderam o apelido de “Veneza portuguesa”, pelos ovos moles —um doce absurdamente doce—, e, mais recentemente, pelo polo de start-ups que se estabeleceu em torno da universidade local. Nesta segunda-feira (1º), a cidade explodiu nas redes sociais por uma razão infame. Um morador local, João Oliveira, publicou um vídeo no TikTok oferecendo € 500 (R$ 3.170) “por cabeça de brasileiro”. O vídeo viralizou e causou indignação na comunidade brasileira em Portugal. A conta dele no TikTok não está mais disponível.
Na gravação, Oliveira brande uma nota de 500 euros e diz: “Cada português que trouxer a cabeça de um brasileiro, desses zucas que vivem aqui em Portugal, estejam legais ou ilegais, cada cabeça que trouxer, cortada rente no pescoço, eu pago 500 euros por cabeça”.
Após a publicação, nesta terça, o Ministério Público português recebeu uma queixa-crime contra Oliveira. Um grupo de 39 advogados fez a denúncia formal, em que afirmam que o homem “incita a prática de violência extrema, designadamente sugerindo decapitações, e chega a oferecer dinheiro para que tais crimes sejam cometidos”. Segundo o grupo, “tais declarações configuram clara incitação ao homicídio, apologia de crime e discurso de ódio dirigido contra uma comunidade específica“.
A infâmia se somou a várias outras demonstrações recentes de xenofobia. Um relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI, na sigla em inglês), publicado em junho deste ano, chamou a atenção para o aumento dos crimes de ódio em Portugal. O número de notificações –que incluem ofensas, incitação à violência e violência propriamente dita– subiu de 63 em 2019 para 327 em 2024. Recentemente, a polícia portuguesa prendeu integrantes de uma milícia armada de extrema-direita.
“Esta é a expressão mais perversa, violenta e criminosa do discurso anti-imigração, do racismo e da xenofobia em Portugal”, escreveu em suas redes sociais a brasileira Ana Paula Costa, presidente da Casa do Brasil, organização que presta assistência aos imigrantes. “O senhor já foi identificado, supostamente um pasteleiro [confeiteiro] (…). Isso só demonstra que não há pessoa mais ou menos improvável para cometer discurso de ódio, sobretudo quando passamos a normalizar tamanha violência e a desumanizar os imigrantes“, afirmou, comentando a postagem de João Oliveira.
O advogado brasileiro Wilson Bicalho, que atua em Portugal, afirmou à Folha que o vídeo se trata de um “caso inequívoco de discurso de ódio dirigido a toda uma comunidade específica”. Segundo ele, “a liberdade de expressão não pode servir de escudo para a incitação à violência” e, por isso, “o discurso de ódio tem que ser combatido com o rigor da lei”.
O episódio se dá num momento em que Portugal discute regras mais rígidas para a imigração. A primeira versão da “Lei dos Estrangeiros”, como é conhecida no país, foi rejeitada –ou “chumbada”, como se diz em Portugal— pelo Tribunal Constitucional do país. O debate sobre o tema vem sendo contaminado pelos integrantes do Chega, o partido de ultradireita do país. Numa sessão na Assembleia da República, o líder da sigla, André Ventura, leu em voz alta uma lista de alunos de escola pública, chamando a atenção para os nomes de origem árabe e indiana. A demonstração de xenofobia expondo crianças foi repudiada pelos demais partidos.
João Oliveira, o autor dos insultos racistas, trabalhava na Padaria Variante, na verdade um pequeno restaurante especializado em pizzas. Em seu perfil no Instagram, o estabelecimento publicou: “A nossa equipa é formada por pessoas de diferentes origens –brasileiras, santomenses, venezuelanas e portuguesas– e temos muito orgulho da diversidade que nos caracteriza. Condenamos qualquer atitude racista e reiteramos o nosso compromisso em manter um ambiente de respeito e inclusão”. Associações de imigrantes brasileiros anunciaram que vão formalizar queixa contra Oliveira por incitação à violência.