A entrevista de Vladimir Putin para Tucker Carlson, no último dia 8 (no YouTube, com opção de legendas em inglês), funcionou como uma peça de propaganda russa, enquanto o Legislativo americano discute a aprovação de um novo pacote multibilionário para a Ucrânia. Carlson igualmente se deu bem, multiplicando a importância da sua rede privada de mídia e seu cacife político. Percebendo isso, muitos foram rápidos na desqualificação do conteúdo. “Não acredite em nada do que Putin diz!” é a fala-padrão, mostrando, mais uma vez, que o raciocínio patina na bile.
A primeira grande questão que a entrevista ajuda a responder é: será que a invasão da Ucrânia foi uma reação à expansão da Otan? O fim da União Soviética foi acompanhado por discussões sobre o tema e, de acordo com o que certa vez disse Mikhail Gorbatchov (1931-2022), promessas (nunca formalizadas) de contenção. Após duas ondas expansionistas, a tensão extravasou quando a Otan declarou que Ucrânia e Geórgia poderiam se juntar ao bloco (2008), ao que os russos se opuseram veementemente, alegando questões de segurança.
A expansão da aliança militar ocidental é um fator de inegável relevância nesta guerra. Putin, entretanto, dedicou a primeira meia hora da entrevista ao argumento de que russos e ucranianos são um povo só. Este ponto seria irrelevante se a única questão fosse a segurança de suas fronteiras. Logo, não é.
A entrevista também revelou o que ele entende por desnazificação. A Ucrânia de fato tem penetração neonazista, e combatentes do batalhão de Azov servem de exemplo, mas as pesquisas mostram que o neonazismo é mais presente em vários outros países, enfraquecendo o valor de face do argumento. A saída retórica de Putin é dizer que, na Ucrânia, o nazismo teria envenenado o espírito nacional, que originariamente seria russo. Desnazificar, portanto, significaria combater o afastamento da órbita russófona, usando como mote o espírito da ‘grande guerra patriótica’, que é como os russos chamam a Segunda Guerra Mundial.
A combinação desses pontos é esclarecedora. Putin modelou a legitimidade da guerra em curso a partir de dois fatores: segurança e autoridade secular para rechaçar o nacionalismo ucraniano, que seria representativo da decadência moral da “dissidência ucraniana”. Esqueça os modelos unidimensionais da esquerda (só segurança) e da direita liberal (imperialismo puro) para explicar o que se passa na mente de Vladimir; eles estão igualmente errados.
Agora, mesmo sendo óbvio que os ucranianos devem ser livres para escolher o que quiserem, fato é que o país está destroçado, 20% menor, e os mortos são contados na casa das dezenas de milhares. O tudo ou nada com a Rússia parece ter sido um erro tremendo. Como aconteceu?
Logo após o início da invasão, os dois países começaram a negociar um acordo de paz, que foi abortado. Na entrevista, Putin diz que o então premiê do Reino Unido, Boris Johnson, dissuadiu Volodimir Zelenski de seguir com as conversas. De fato, lê-se o seguinte no site do governo britânico: “Conversa com Presidente Macron, 6 de maio de 2022. O primeiro-ministro atualizou-o sobre a sua visita a Kiev no último mês e compartilhou sua convicção de que a Ucrânia iria ganhar (…). Ele urgiu contra qualquer negociação com a Rússia nos termos que dão credibilidade à falsa narrativa do Kremlin para a invasão, mas enfatizou que esta era uma decisão para o governo ucraniano”.
É importante não superinterpretar o texto nem superestimar a importância do aconselhamento externo. Do mais, a contenda serve só de introito ao que realmente importa: o acordo de paz envolveria supervisão externa para garantir a segurança ucraniana; cabe saber se foi dito a Zelenski que seus aliados não assumiriam este papel se ele chegasse a termos com Putin, como afirmado pelo jornalista Aaron Maté, pelo negociador e ex-chanceler alemão Gerhard Schröder (“os ucranianos não concordaram com a paz pois não foram autorizados a fazê-lo”) e pelo líder das negociações pelo lado ucraniano, David Arakhamia. Isso teria deixado Zelenski de mãos atadas, já que sem tal apoio seu país poderia ser novamente invadido. A questão baliza a responsabilidade moral dos países da Otan de darem suporte à Ucrânia agora e no pós-guerra.