Alguns meses antes de morrer, aos cem anos de idade, no ano passado, Takashi Morita via o mundo em guerra com certa frustração. “Não trabalhamos direito, não fizemos o suficiente”. Morita foi um dos sobreviventes da bomba atômica lançada pelos Estados Unidos sobre Hiroshima, no Japão, que vivia no Brasil.
Ele fundou a Associação Hibakusha Brasil pela Paz, grupo brasileiro que reunia sobreviventes das catastróficas explosões de 1945 em Hiroshima e Nagasaki, que mataram centenas de milhares de pessoas instantaneamente e em decorrência de efeitos de queimaduras e da radiação.
“O cenário hoje está muito perigoso, quase repetindo Hiroshima e Nagasaki”, diz Junko Watanabe, 82, sobrevivente que também participou da associação.
“Nós hibakushas sabemos o que é isso [a bomba] espiritualmente e fisicamente, sabemos 100% o que é isso. Mas daqui a pouco todas as vítimas das bombas vão morrer; e depois, o que vai acontecer?”, questiona.
A dúvida de Watanabe e a frustração de Morita, relatada por sua filha, Yasuko Morita, 78, referem-se a um mundo em plena transformação, cujos resultados os poucos sobreviventes vivos das bombas atômicas americanas talvez não tenham tempo de testemunhar, como fizeram naquele mês de agosto de 1945.
O embate da Rússia contra os Estados Unidos e a Otan, a aliança militar ocidental liderada por Washington, é o maior conflito em termos de potencial de obliteração nuclear, dados os arsenais atômicos dos dois principais países envolvidos, de longe os maiores até hoje —acumulam quase 90% das ogivas existentes.
Mas há também outras disputas em fogo brando envolvendo países com bombas do tipo, como é o caso do conflito perene entre Índia e Paquistão e disputas territoriais entre Nova Déli e Pequim, além de ameaças como a do programa de mísseis da Coreia do Norte.
No Oriente Médio, analistas consideram Israel um país com ogivas, embora Tel Aviv adote uma política de ambiguidade sobre admitir essa capacidade militar. Seu arquirrival regional, o Irã, foi atacado pelo Estado judeu e pelos EUA, em junho, sob o pretexto de que Teerã estava próximo de desenvolver uma bomba nuclear, algo que o regime iraniano nega.
A associação Hibakusha, palavra que significa algo como “afetados pela bomba”, foi criada em 1984 com o intuito de buscar assistência para as vítimas das explosões, algo inicialmente dado apenas para sobreviventes que viviam no Japão.
Yasuko conta que os efeitos posteriores da radiação, pouco conhecidos e estudados na época, provocavam sintomas e doenças que aos poucos foram reconhecidos como consequências de longo prazo de quem foi exposto ao material radioativo.
Seu pai, por exemplo, foi afetado por uma leucemia poucos anos após a bomba. Em 1945, ele era um jovem policial militar em Hiroshima, onde conheceu a esposa e onde Yasuko nasceu, antes de emigrar para o Brasil. Segundo a filha, ele estava caminhando a poucos quilômetros em sentido oposto ao local sobre o qual a bomba explodiu, o que rendeu a ele queimaduras, além dos efeitos posteriores da radiação.
Esse adoecimento dos sobreviventes, diz Yasuko, em que sintomas apareciam de formas diferentes e em períodos diversos da vida, tornou-se mais evidente no Brasil por volta da década de 1980, com o envelhecimento dos hibakushas no país.
Foi dessa percepção que os pais de Yasuko decidiram fundar a associação. Após lerem em jornais dedicados à colônia japonesa que havia a possibilidade de buscar assistência de Tóquio, algo inicialmente rejeitado pela representação diplomática do Japão no Brasil, os sobreviventes se reconheceram como tal e se reuniram.
As reivindicações passavam por pedidos para que o governo japonês oferecesse tratamentos no Japão, ou trabalhasse, por exemplo, para que médicos brasileiros fizessem estágios no país asiático para retornar com mais ferramentas para lidar com as consequências da radiação nos consultórios, entre outras.
Há ainda 55 hibakushas no Brasil, segundo Yasuko, e o grupo encerrou oficialmente as atividades durante a pandemia da Covid-19, diante da percepção de que tiveram sucesso nas reivindicações. Sobreviventes e colaboradores ainda participam de eventos e palestras para falar sobre o tema.
Yasuko participa em Hiroshima de celebrações dos 80 anos da bomba de Hiroshima nesta terça (5), quarta (6) no Japão. Ela vai como familiar de sobreviventes, acompanhada de outro hibakusha morador do Brasil, Kunihiko Bonkohara, que tinha cinco anos no dia da explosão.
A confederação das organizações de sobreviventes, chamada Nihon Hidankyo, venceu o Prêmio Nobel da Paz em outubro de 2024, poucos meses após a morte de Takashi Morita, “por demonstrar através de depoimentos de testemunhas que armas nucleares nunca mais devem ser usadas”, segundo a fundação que entrega a láurea.
“Ele com certeza do outro lado deve estar muito feliz pela homenagem, e ao mesmo tempo muito triste pela situação mundial, que em vez de melhorar, está cada vez mais complicada”, diz Yasuko. Quando, antes de morrer, seu pai se mostrou aflito com o que via, ela respondeu: “Nós fizemos o que podíamos. Era nossa obrigação”.