Durante a corrida presidencial americana de 2024, a socióloga Michèle Lamont entrevistou em Manchester, no estado de New Hampshire, dezenas de pessoas do grupo que se tornou chave na eleição de Donald Trump: jovens de 18 a 30 anos sem diploma universitário.
A professora da Universidade Harvard conta de uma entrevistada em específico, de origem latina, que se disse decepcionada com o Partido Democrata porque foram eles que permitiram a entrada de haitianos e venezuelanos nos Estados Unidos. A mãe dela havia imigrado para o país e esperado anos a fio pelo green card e, diz a socióloga, a jovem via as políticas de facilitação migratória como uma espécie de trapaça.
Ela parecia se enxergar mais na classe média americana do que entre os latinos que tentavam a sorte como fez sua mãe. É um exemplo prático, segundo Lamont, da ideia de “nós contra eles” que impera nos EUA hoje.
Lamont se debruçou sobre a construção da desigualdade em diversos livros, como “Seeing Others” e “Getting Respect”, nenhum traduzido no Brasil até agora. Ela visita o país nesta semana para o 22º Congresso Brasileiro de Sociologia, na Universidade de São Paulo.
A socióloga diz ver muito do que Trump fala como uma tentativa de aprofundar essa fronteira que divide grupos. “Ele está tentando reformular quem está dentro e quem está fora”, diz, “ele penaliza as elites liberais, as pessoas trans, imigrantes. É uma política de criação de hierarquias”.
Ainda na campanha, ele usou um jogo de palavras para criticar duplamente a então candidata democrata Kamala Harris: “Kamala is for they/them. Trump is for you”, ou, Kamala é para elu/elus e Trump é para você.
“Me interessa pensar a desigualdade e a forma como ela se expressa por meio de quais grupos são valorizados, quais são estigmatizados e quais são os limites entre ambos”, diz a pesquisadora. “Meu foco é pensar como esses limites podem ser transformados.”
Lamont desafia as teorias que dizem que, pela natureza humana, gostamos de quem se parece conosco e desgostamos de quem não parece. “Eu tento ver as condições sociais por meio das quais esses limites podem ser transformados.”
A socióloga diz que as políticas de inclusão, demonizadas sob Trump, são capazes de capitanear esse tipo de mudança para minorias raciais e para a população LGBTQIA+. “Contribui para a sensação de dignidade, que está ligada ao bem-estar subjetivo e à saúde mental”, diz.
A recente valorização da saúde mental, segundo a socióloga, torna a dignidade uma questão central para o bem-estar e ganha corpo como objeto de estudo das ciências sociais. “Historicamente, é uma área do conhecimento muito ancorada no materialismo”, afirma.
É um pilar para gerações mais jovens, principalmente a geração Z, que abraçam as políticas de inclusão e valorizam profundamente o bem-estar. “Para as pessoas que abraçam as políticas de inclusão, como a geração Z e os millennials, existe um contexto de desigualdade crescente e de declínio do sonho americano. O sonho da mobilidade social se tornou totalmente obsoleto.”
Nos últimos 15 anos, diz a socióloga, o foco em inclusão e na ideia de autenticidade substitui o sonho americano como fonte de esperança. “Quando as pessoas sabem que não podem ascender socialmente, elas querem viver a melhor vida hoje.”
Falta esperança, ela diz acreditar, para os cerca de 30% de americanos que ainda apoiam Trump depois de meses de medidas radicais, com alto impacto social e econômico, como as tarifas no comércio global e a “big, beautiful bill”, lei que corta impostos dos mais ricos enquanto reduz proteções ao bem-estar social.
“Minha teoria é que essas pessoas só precisam de esperança”, diz Lamont. “E, já que o Partido Democrata não consegue oferecer isso, essas pessoas seguem leais a Trump.”