Escrever colunas é fazer curadoria de informação. Se a tática “é inundar a área com merda”, a dificuldade aumenta porque a enxurrada de excremento informativo nos mantém atordoados de forma constante, como maratonistas correndo em círculo.
Vamos ter de prosseguir com maior desconfiança. Apenas mencionar declarações e descrever ações não bastam mais para informar em meio às rupturas da legalidade, do respeito às instituições e da soberania de países. Precisamos de uma nova higiene cognitiva para dar contexto a cada flatulência verbal de renegados no poder ou pessoas tentando tomá-lo.
Celso Rocha de Barros articulou o que podemos apelidar de “teste do Marcola”, lembrando que desejos e ameaças do líder do PCC não seriam considerados razoáveis pelos oportunistas da vida pública salivando para herdar o eleitorado de direita.
Checagem de fatos já não basta quando líderes convencem seus seguidores a não acreditar nos próprios olhos. É preciso checagem de realidade se um presidente diz, de forma despreocupada, que as estatísticas de crime e de inflação são fake news.
Desde a década passada, esperneei como uma Cassandra contra a adoção do jargão fake news pela imprensa. Era uma capitulação à alergia de autocratas da realidade —a primeira de muitas, como a negligência da imprensa dos EUA ao adotar um slogan, não um substantivo preciso, apelidando de “big, beautiful bill” um pacote legislativo de efeito nefasto para a maioria da população.
Devemos questionar o poder dos que dão plantão sob a mesa do banquete, colhendo migalhas. Em abril, o governo da Índia contratou por US$ 1,8 milhão anuais um lobista para representar seus interesses comerciais em Washington e dar “aconselhamento estratégico, planejamento tático e assistência com relações governamentais”.
Em julho, o governo de Narendra Modi acreditava que as novas tarifas comerciais dos EUA seriam limitadas a 15%. Na semana passada, o país de 1,5 bilhão de habitantes acordou com o choque do tarifaço de 50%.
O nome do lobista do governo indiano? Jason Miller. O mesmo troll que cutuca a independência do Judiciário brasileiro nas redes sociais e que esteve sob a custódia da Polícia Federal em 2021. Está aí um cabra que não merece mais oxigênio. “Se você não está sentado à mesa, foi incluído no menu,” diz o provérbio.
Merecemos mais do que manchetes como esta: “Líder do Brasil defende a soberania nacional, em desafio a Trump”, publicada na edição impressa do New York Times, no último dia 31. Aplicando o “teste do Marcola”, um grande jornal publicaria a manchete “Líder dos EUA defende a soberania nacional, em desafio a Lula?”
Manobras de distração são diferentes de ações com consequências. “Presidente fulano diz isto” ou “Senador sicrano anuncia aquilo” não são mais aplicáveis a mentirosos em série testando a resistência do Estado de Direito. A descrição complacente de quadros políticos em declínio —como o bipartidarismo nos EUA— não narra a história que testemunhamos.
Um desafio crucial é cobrir com clareza cenários impensáveis, num contexto em que o pessoal esmaga o institucional —ter coragem de questionar se a Ucrânia é pressionada a ceder território para tirar Jeffrey Epstein das manchetes.
Durante uma crise existencial, é preciso inventar critérios imaginativos de redação que acendam o alarme para o público. Meu papel não é confundir objetividade com neutralidade se governantes, juízes ou legisladores erodem o terreno democrático sem o qual minha profissão não sobrevive.