Na noite de domingo (26), voei pelo olho do furacão Melissa —um dos momentos mais impressionantes da minha carreira e uma visão única sobre a meteorologia que a maioria das pessoas nunca terá. Foi uma experiência hipnotizante e, surpreendentemente, comovente —tanto deslumbrante em termos científicos como horrorizante do ponto de vista humanitário.
Dias antes, eu refletia sobre como acompanhar a tempestade. As simulações dos modelos computacionais mostravam que o sistema tinha tudo para se tornar um monstro —e que mais tarde estaria a caminho de um golpe devastador contra a Jamaica, com previsão de até 1.000 mm de chuva, marés de tempestade de 3 a 4 metros e ventos destrutivos atingindo a ilha. Uma das opções que eu tinha para documentar a tempestade: voar por dentro dela com um caçador de furacões.
Existem dois grupos de caçadores de furacões —os da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês) e uma equipe da Força Aérea. Já havia voado com os caçadores da NOAA uma vez antes, partindo de St. Croix, nas Ilhas Virgens, em setembro de 2023, para interceptar o furacão Lee. Mas Lee, então um quase categoria 3, estava enfraquecendo. O Melissa, ao contrário, estava se fortalecendo — e rapidamente.
Na noite de sábado (25), ele exibiu todo o seu poder, evoluindo de tempestade tropical a categoria 4 em pouco mais de 15 horas. Manteve-se estável durante boa parte do domingo, antes de se intensificar novamente no fim do dia. O Melissa estava prestes a mostrar do que era capaz.
Para o voo, embarquei no NOAA N42RF, mais conhecido como “Kermit”. É um dos dois aviões P3 Orion especialmente equipados que a agência possui desde a década de 1970. O Kermit se alterna com seu equivalente —o Miss Piggy. (Um pequeno sapo de pelúcia pendura-se no para-brisa da cabine.)
Decolamos do Aeroporto Internacional Lakeland Linder, na Flórida, pouco antes das 17h (18h de Brasília); às 17h30 (18h30) já estávamos ao sul de Miami.
A cena a bordo de um caçador de furacões —e a tempestade ao redor
Havia 19 pessoas a bordo —em sua maioria pilotos, engenheiros de voo e pesquisadores. Um deles era responsável por operar o TDR, o radar Doppler de cauda, um radar meteorológico especial acoplado a um cone alongado que se projeta da parte traseira do avião. Outro membro da tripulação manuseava as sondas— pequenos recipientes de instrumentos lançados por um buraco no piso do avião. Como um balão meteorológico invertido, as sondas coletam dados de temperatura, pressão e vento — mas na descida, não na subida —26 sondas estavam prontas para uso.
Eu sabia que não teria Wi-Fi durante o voo. Afinal, isso não era um voo comum da Delta. Antes da decolagem, dei uma última olhada nas imagens de satélite e nos dados de reconhecimento do voo anterior. A pressão atmosférica do Melissa estava voltando a cair —sinal de que ele estava elevando mais ar do centro e se intensificando. Um avião da Força Aérea havia detectado ventos mais fortes. E o Melissa, visto do satélite, parecia uma serra simétrica, com um olho de 13 quilômetros de diâmetro.
Os céus próximos a Cuba estavam azuis, entrecortados por torres de nuvens cumulus. Esses chuviscos isolados foram o primeiro sinal da presença do Melissa. Ao nos aproximarmos da Jamaica, havia duas camadas distintas no céu. No alto, nuvens finas e esparsas proporcionavam um pôr do sol deslumbrante, captando os últimos raios dourados do dia. Mais próximo da superfície do mar, algumas nuvens fofas ainda podiam ser vistas.
As janelas se tornaram cinzentas e indistintas à medida que nos aproximávamos da tempestade. Embora o Melissa fosse poderoso, parecia relativamente pequeno. Esse é o segredo dos furacões —em comparação com os sistemas de tempestade de latitudes médias, eles são diminutos. Mas concentram toda a sua força naquela pequena área, produzindo ventos e ondas extremamente potentes.
O Melissa parecia um típico categoria 5 no satélite, mas tecnicamente ainda apresentava ventos de categoria 4. Contudo, estava se intensificando. Quando entrássemos no olho, imaginei que ele já poderia ter alcançado a categoria 5.
Ao adentrarmos a tempestade, a escuridão chegou. O sol já havia se posto, mas a escuridão parecia, de algum modo, mais densa. Mal conseguia ver a asa do avião através da penumbra. O exterior não era um abismo negro, mas uma bruma sombria.
Não havia pontos de referência visuais, luzes ou marcos. Tudo o que se ouvia era o rugido quase ensurdecedor das hélices, girando mais intensamente à medida que avançávamos para o núcleo. A turbulência aumentava a cada segundo —era o único indício de movimento. Um leve balanço deu lugar a solavancos e quedas abruptas. Era como dirigir off-road no ar, por crateras grandes o suficiente para engolir uma SUV.
“RMW se aproximando”, disse uma voz no fone de ouvido. Radius of Maximum Winds — raio de ventos máximos. Isso significava que estávamos nos aproximando da parede do olho, o anel mais interno de ventos furiosos girando ao redor do centro. Como num ralo atmosférico, estávamos no meio do vórtice.
Como em qualquer vórtice, o fluido (neste caso, o ar) espirala para dentro. O ar quente e úmido corre em direção ao centro, absorvendo energia térmica do oceano abaixo. À medida que as tempestades liberam calor, o aquecimento faz o ar ao redor subir. Tanto ar ascende que cria um vazio próximo à superfície. O Melissa tinha um déficit de 8% —havia levantado 8% do ar de seu núcleo—, e esse “vazio” é o que impulsiona os ventos ferozes que convergem para dentro.
À medida que o ar se curva para dentro e para cima, forma um anel de tempestades com 15 km de altura. Os ventos na parede do olho atingiam velocidades absurdas; sobre o oceano aberto, rajadas passavam de 220 km/h. Eventualmente, o ar ascendente colide com o teto da baixa atmosfera — a tropopausa. Parte desse ar ricocheteia, descendo novamente. Ao afundar, ele aquece e seca. Isso cria um oásis de calma: o olho.
A turbulência na parede do olho arremessou uma das minhas câmeras ao chão. Minha mochila estava presa por um cinto de segurança em um assento do galley (espaço reservado no avião geralmente para armazenar e preparar alimentos), uma espécie de cabine de trabalho na parte traseira do avião. Como viajávamos a quase 450 km/h, o olho de 16 km de largura duraria apenas dois minutos enquanto cruzássemos o centro. Preparei minha câmera DSLR.
E então aconteceu. Emergimos da névoa. Um fino luar pairava sobre nós no crepúsculo profundo. Encostei o rosto na janela. Fiquei boquiaberto.
Estava sentado no meio de um “estádio dos deuses” com 16 quilômetros de diâmetro. Em todas as direções, nuvens colossais se erguiam acima de mim —e, bem acima, as estrelas cintilavam. À luz suave da lua, era possível ver as pinceladas das nuvens na parede do olho girando em velocidades estonteantes. Mas, por um breve instante, eu estava em um oásis de calma.
De repente, os ventos caíram a zero na altitude de voo. A calmaria durou apenas alguns segundos antes de a leve brisa dentro do olho mudar de direção. Imaginei como seria estar em um barco abaixo —ondas de 30 metros, respingos de água salgada tão densos que se confundiriam com a chuva torrencial, redemoinhos semelhantes a tornados cortando o mar— sem falar nos ventos de pelo menos 225 km/h.
“Centro fixado”, disse a voz no fone, trazendo-me de volta à realidade.
Notei que começava a suar. Então percebi: estava dentro de uma chaminé atmosférica. Furacões são sistemas de núcleo quente, marcados por uma coluna de ar aquecido no centro. E a temperatura dentro do olho, mesmo na altitude do voo, era 16 graus mais alta do que fora. Mesmo a quase 3.000 metros de altitude, o ar era sufocantemente quente e úmido. Parte desse calor invadia a cabine não pressurizada.
Havia algo de emocional em estar no olho; talvez fosse a poesia sombria de saber o que a parede do olho ao redor continha, e ainda assim —mesmo que brevemente— estar imune a isso.
Ou talvez fosse o fato de passar décadas admirando fotos do “efeito estádio” que agora eu via com meus próprios olhos; finalmente eu tinha minhas próprias fotos. Eu estava vivendo o folclore meteorológico.
Acima de tudo, era a dissonância cognitiva de saber o que estava por vir.
O Melissa estava se transformando em um furacão de categoria 5 que inevitavelmente traria catástrofe para muitos. Como cientista, posso admirar a perfeição meteorológica —afinal, é o único modo de produzir uma tempestade do calibre do Melissa. Mas, como ser humano, sei que milhões de pessoas poderiam acordar nesta quarta-feira (29) em meio à devastação —comunidades destruídas, uma paisagem irreconhecível e cicatrizes que levarão décadas para fechar.




