Mulheres tiveram uma missão no conclave que apontou o 267º papa da Igreja Católica: freiras cozinharam e arrumaram os quartos dos 133 cardeais —Robert Prevost, eleito pelos pares e feito Leão 14 no segundo dia de votação, incluso.
Na véspera, com fumaça rosa, outras católicas protagonizaram um protesto contra o monopólio masculino que dominou a cúpula da Igreja por quase toda a sua história. Spoiler: elas já foram mais relevantes.
“A Igreja Católica contemporânea se sustenta, em grande medida, pelo trabalho cotidiano e invisibilizado das mulheres”, diz a socióloga da religião Tabata Tesser, da USP. “São elas que limpam, organizam, preparam os espaços litúrgicos, cuidam da catequese, acompanham os idosos, articulam as festas religiosas e mantêm viva a dinâmica comunitária nas paróquias.”
Essas mesmas mulheres, contudo, permanecem impedidas de “chegar lá”, afirma Tesser. “Podem ser secretárias dos párocos, mas não suas sucessoras. Podem ter as chaves da igreja, mas não celebrar os sacramentos. Essa contradição revela uma profunda desigualdade de gênero alicerçada por uma teologia institucionalmente masculinista.”
O Código do Direito Canônico diz expressamente: “Só o varão batizado pode receber validamente a sagrada ordenação”. Leão 14 já disse que o aval para ordenar sacerdotisas não resolveria o problema da Igreja. Poderia inclusive “criar um novo”, afirmou em 2023, ainda na pele cardinalícia.
Kate McElwee, ativista e leiga católica que coordena a Conferência de Ordenação de Mulheres, explicou por que seu grupo soltou fumaça rosa nos arredores do Vaticano. Se a branca sinaliza a eleição de um papa, e a preta mostrava que os votantes de batina ainda não haviam chegado a um nome, a cor culturalmente atribuída ao feminino denunciava o que McElwee considera “um pecado e um escândalo”.
A manifestação, disse, “era um sinal de esperança de que a Igreja possa trabalhar rapidamente para trazer as mulheres como iguais”, enquanto olham para o futuro do catolicismo e se perguntam: “Há um lugar para mim aqui?”.
Já houve mais. Nos primórdios do cristianismo, na chamada igreja primitiva, elas “tinham um papel muito importante”, ainda que ainda escanteadas do centro do poder, diz o vaticanista Filipe Domingues, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana.
Jesus se cercou de apóstolos homens, é verdade. “Mas as primeiras que encontram Cristo ressuscitado são as mulheres, como Maria Madalena”, diz Domingues. “Primeiro ele se apresenta a elas.”
Segundo a antropóloga e historiadora Lidice Meyer, estudiosa da Bíblia, mulheres participavam junto com os homens nas orações, “até mesmo trazendo ensinamentos”.
Corta para o século 21: Francisco descartou a inclusão delas no diaconato, que tem por função auxiliar no trabalho clerical —não celebra missas, por exemplo. É uma das ordens sagradas restritas aos homens na Igreja. As outras são o episcopado (bispos) e o presbitério (sacerdotes em geral).
Em 2024, em entrevista à rede CBS News, o papa argentino respondeu se achava que uma menina que cresce católica hoje tem alguma chance de entrar no clero algum dia: não. “Mas as mulheres sempre tiveram, eu diria, a função de diaconisas sem serem diáconas, certo?”, disse na ocasião.
Francisco pode não ter dado o passo que permitiria às mais de 700 milhões de católicas no mundo frequentar as esferas de poder da Igreja, se assim desejarem, mas não fugiu desse debate. Em 2019, o Sínodo da Amazônia convocado pelo papa discutiu a possibilidade do diaconato feminino. Não rolou.
Cinco anos depois, o tema voltou à baila, em novo encontro para debater o futuro da Igreja. A conclusão: não se viu empecilho para lideranças femininas na administração eclesiástica, mas de novo sem sinal verde para diaconisas.
Sob o papado de Francisco, algumas mulheres ganharam postos de destaque no Vaticano, algo “sem precedentes”, afirma a socióloga Tesser. “Entre os nomes mais notáveis está a irmã Raffaella Petrini, a primeira mulher a assumir a secretaria-geral do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano, cargo equivalente ao de vice-governadora.”
Outra figura central é Simona Brambilla, autoridade máxima sobre as ordens religiosas masculinas e femininas. Já a freira Nathalie Becquart teve um inédito direito a voto num sínodo.
É um avanço, mas nenhuma reviravolta estrutural, segundo Tesser. “A abertura para a participação feminina em instâncias administrativas e consultivas não tem se traduzido em inclusão nos debates sobre reformas profundas, como celibato clerical ou ordenação de mulheres, temas deliberadamente excluídos tanto do pontificado de Francisco quanto das expectativas para o governo de Leão 14.”
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